Homilia da Comemoração dos Fiéis Defuntos

02-11-2023
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

Cemitério de S. Martinho
(Missa terceira)

1. "Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele. Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, também aquele que Me come viverá por Mim" (Jo 6,57) — acabámos de escutar ao Senhor Jesus. E, na IIª Leitura, S. Paulo dizia-nos: "Se acreditamos que Jesus morreu e ressuscitou, do mesmo modo, Deus levará com Jesus os que em Jesus tiverem morrido" (1Tess 4,14). Por isso, no Credo, depois de professarmos a fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, podemos afirmar: "Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir".

A esperança na ressurreição dos mortos, a esperança na Vida Eterna, tem o seu fundamento nestas afirmações. Por isso, também nós acreditamos que "Deus levará com Jesus, os que em Jesus tiverem morrido".

Jesus morreu na cruz. Esse é um acontecimento seguro, histórico, sem discussão. Os motivos da Sua condenação estão relacionados com o que as autoridades judaicas da altura consideraram como "blasfémia". Isso mesmo o tinham dito, já antes do drama da Paixão: "Não queremos apedrejar-te por boas obras mas por blasfémia. Porque Tu, sendo apenas um homem, Te fazes passar por Deus" (Jo 10,33). E o Centurião romano, ao confrontar-se com a morte de Jesus, afirma: "Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus" (Mc 15,39).

Jesus morre porque é Deus no meio da história. Porque é Deus feito homem. Porque o povo para o qual tinha sido enviado não foi capaz de O reconhecer e de aceitar a proposta de vida que o próprio Deus lhe fazia, em 1ª pessoa. A cruz é o desfecho e o centro (o motivo) do caminho iniciado na Anunciação e no Presépio de Belém: Deus que assume a nossa condição humana até à morte. Que faz seu tudo quanto é humano, para nos poder dar a viver tudo quanto é divino — quer dizer: a Sua vida, a Vida Eterna.

Um véu, diz S. Paulo na IIª Carta aos Coríntios (2Cor 3,13), como que desceu sobre o povo de Israel, impedindo-o de reconhecer a Jesus como Salvador, e fazendo-o permanecer preso à Antiga Aliança. Por isso O condenaram. "Se O tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória" (1Cor 2,8), diz também o Apóstolo Paulo noutra das suas cartas.

2. Jesus ressuscitou. Essa é a grande surpresa da manhã de Páscoa. Aquele que todos tinham visto morto e sepultado, eis que agora vai ao encontro dos seus, não apenas como "espírito" mas como "corpo ressuscitado". Vai ao encontro de Maria Madalena e das outras mulheres que foram ao sepulcro para chorar e para completar os ritos de sepultura, e se depararam com a pedra rolada e o túmulo vazio. Vai ao encontro de Pedro e dos outros Apóstolos, reunidos cheios de temor, sem saber o que fazer, para onde ir e que sentido poderiam ter aqueles anos que tinham passado como discípulos de Jesus. Vai ainda ao seu encontro à beira-mar, para lhes preparar a refeição e comer com eles. Vai ao encontro dos dois homens de Emaús que regressam a casa, desanimados e sem esperança, explicando-lhes as Escrituras e partindo para eles o Pão da Eucaristia. Vai, por fim, ao encontro de Paulo, o fariseu perseguidor dos cristãos que, no Caminho de Damasco, se vê derrotado na sua soberba, e se torna, depois de receber o baptismo, anunciador de Jesus pelo mundo conhecido de então.

Aquele que morreu, que experimentou a morte de cruz — a morte dos escravos, dos homens e mulheres de mais baixa condição, vivida sempre no meio de atrozes sofrimentos — aquele que morreu, esse mesmo ressuscitou, vive para sempre. A morte já não tem domínio sobre Ele. Traz consigo a marca indelével do pecado humano (jamais o abandonarão as chagas das mãos, dos pés e do lado), mas venceu a morte para sempre. É o "novo Adão", quer dizer: o início de uma nova humanidade, de um novo modo de viver, de ser humano.

3. Também nós morremos. Existem muitos modos de morrer, de viver esse momento único e decisivo para cada ser humano que é a morte do nosso corpo físico. Nós, cristãos, queremos "morrer em Jesus". Desde o momento do nosso baptismo, a nossa existência de discípulos consiste na procura de uma cada vez maior identificação com o Senhor. Ele deu-nos a Sua vida quando sobre nós foi derramada a água baptismal e invocado o nome da Santíssima Trindade. Passámos a pertencer-Lhe. A partir desse momento, em cada dia, queremos morrer para o pecado para vivermos (com Ele e nele) a Sua vida nova de ressuscitado. Essa é a nossa tarefa de cristãos, de baptizados.

Por isso, podia S. Paulo dizer: "Com Cristo estou crucificado. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. O que agora vivo na carne, vivo-o na fé no Filho de Deus, que me amou e a si próprio se entregou por mim" (Gal 2,19b-20).

Também nós morremos. Mas, se morremos em Jesus, "Deus levará com Jesus os que em Jesus tiverem morrido".

Essa é a esperança que nos anima. Não é esperança vazia. Quase somos levados a pensá-lo, diante da realidade dura, difícil, que diariamente vivemos: seja porque assistimos, impotentes, ao drama da guerra em Israel ou na Ucrânia, na Nigéria ou em Moçambique; seja porque somos confrontados com a dificuldade que tantos dos nossos concidadãos —amigos, conhecidos, ou simples seres humanos que encontramos pelas ruas da nossa cidade — experimentam no seu quotidiano e que não nos pode ser indiferente; seja porque também nós somos levados ao desânimo.

Mas acreditamos que todas essas situações não serão nunca a última e definitiva palavra — e, sobretudo, que a morte não é a palavra final sobre qualquer vida humana. Acreditamos na Vida Eterna porque Jesus ressuscitou e "Deus levará com Jesus os que em Jesus tiverem morrido". Acreditamos na Vida Eterna não apenas para nós mas para todos os que em Jesus tiverem morrido. Acreditamos que todos somos chamados, convidados a essa Vida porque esse é, também, o sopro do Espírito no nosso coração; porque essa é a fé da Igreja — o Credo desse numeroso, imenso coro de testemunhas que atravessa os séculos e cuja profissão de fé fazemos também nossa. Acreditamos na Vida Eterna porque, tal como Jesus, também nós passamos pela morte; mas se morremos em Jesus, também com Ele o Pai nos dará a Vida — a Sua Vida!

Em Jesus, verdadeiramente presente na Eucaristia, encontramos todos aqueles que, nele, já morreram. É a comunhão dos santos, que, em Jesus e com Ele, nos permite comunicar uns com os outros — quer dizer: comunicar aos que já partiram o fruto das nossas boas obras, vividas e realizadas em Jesus; e acolhermos também deles o fruto do seu caminho e (daqueles que já chegaram ao final feliz da sua peregrinação, os santos) o fruto da sua contemplação do rosto divino.

Para aqueles que repousam aqui, neste cemitério de S. Martinho e para todos nós, pedimos ao Senhor misericórdia. E pedimos para todos que, terminada a nossa peregrinação neste mundo, nos seja concedida a graça de morrermos em Jesus para sermos, com Ele, acolhidos na glória.