Conferências do Arcebispo D. Rino Fisichella
Semana de Atualização do Clero
1ª Conferência no Seminário Diocesano do Funchal
25 de janeiro de 2022
Caros sacerdotes, queria, em primeiro lugar, agradecer ao vosso bispo pelo convite que me fez. Conheço-o há muitos anos e estou contente por poder partilhar com os seus sacerdotes algumas horas de comunhão fraterna. Queria agradecer também a cada um de vós pela paciência que tendes comigo, devendo ouvir-me falar uma língua que não é a minha e que me impede de me expressar, como gostaria, com a maior naturalidade.
A Igreja está a viver um momento particular: o convite a colocar-se em caminho para descobrir o grande valor do sínodo para a vida da comunidade cristã. Há alguns dias, a 3 (três) de janeiro, falando com o Papa Francisco sobre o Sínodo, ele disse-me: "Tenho medo que se comece a usar este termo como um adjetivo... agora tudo passa a ser sinodal!". Para quem conhece o Papa, a realidade que melhor exprime o seu pensamento é o verbo. O verbo, de facto, exprime ação, dinâmica, movimento... deveríamos dizer "sinodalizar"! Não existe. Sei disso. Mas passa a ideia. O Sínodo não pode ser uma teoria, nem uma moda do momento. O Sínodo é uma realidade própria da Igreja que brota do seu ser comunidade que vive a comunhão. Como sabemos, a língua grega possui um só termo: koinonia. A koinonia diz, ao mesmo tempo, comunidade e comunhão. Onde existe uma comunidade, é aí que se vive a vida de comunhão; e vice-versa, onde se vive a communio é aí que a comunidade se torna visível. Temos ainda um grande caminho a percorrer para tornar visível o facto de sermos uma comunidade. Não é preciso ter medo. Ser uma comunidade de fé, de esperança e de caridade é algo que já está presente cada vez que celebramos a Eucaristia. O mistério eucarístico - e sublinho o termo "mistério" - já traz consigo o facto de sermos Povo de Deus, chamado a testemunhar a vida de Deus. A Eucaristia permite-nos tocar com a mão a realidade de sermos batizados: por um lado, o chamamento a participar na própria vida de Deus; por outro lado, a responsabilidade da partilha, ou seja, a evangelização.
Como se pode ver, a identidade cristã conjuga-se precisamente nesta dupla dimensão: a comunhão e a evangelização. Parece-me que, nas décadas que se seguiram ao Concílio, sublinhamos fortemente, e com justiça, a primeira realidade. Isto levou a sublinhar de maneira decisiva o renovamento da comunidade cristã. Redescobrimos assim a exigência da comunidade e da comunhão. Em síntese, a Igreja precisou de se reunir para responder à grande questão que Paulo VI colocava com insistência no início do seu pontificado: "Quem és tu, Igreja? E que dizes de ti mesma?". Os Padres, no Concílio, respondiam, antes de mais, com a Sacrosanctum concilium: a Igreja é o Povo de Deus que celebra o mistério da sua existência. A Eucaristia é fonte e cume de toda a sua existência e... Depois, a Lumen gentium entrava ainda mais no cerne da questão e descrevia a natureza da Igreja e a sua constituição hierárquica. A Dei Verbum permitia sublinhar o grande valor que possui a Palavra de Deus revelada e a sua transmissão. Uma verdade que consiste em tomar consciência de que Deus falou e continua ainda a falar connosco, porque ele se "entretém" (DV 2) connosco, ou seja, fica longamente connosco. Por fim, a Gaudium et spes lançava as premissas para perceber como estar presentes no mundo contemporâneo através da forma da partilha e do caminho comum que os filhos de Deus são chamados a realizar com todos os homens e mulheres que encontram.
Dez anos depois do Concílio, Paulo VI tinha compreendido que era necessário dar mais um passo: a evangelização. A Evangelii nuntiandi continua a ter a sua atualidade até aos nossos dias. Se quisermos compreender a exigência da evangelização nos nossos dias, precisamos de voltar a pegar nesta Exortação apostólica e relê-la à luz da Evangelii gaudium do Papa Francisco. Hoje, coloca-se em primeiro lugar a evangelização e a transmissão da fé, porque tocamos com a mão as consequências da secularização. Não vamos aqui fazer uma teoria da secularização. Basta olharmos para os resultados que todos lamentamos: a participação na vida litúrgica está reduzida a percentagens muito baixas (em Portugal?): os batismos diminuem; cresce o número de casamentos civis e uniões de facto mais que os matrimónios religiosos; a catequese para a primeira comunhão ainda conta com percentagens significativas que, contudo, se ficam pela metade para o sacramento do Crisma; os jovens não têm paixão pela fé e as vocações para a vida sacerdotal e religiosa são mínimas... Cresce o agnosticismo, mas sobretudo a indiferença que traz consigo comportamentos individualistas cada vez mais privados da responsabilidade social. Enfim, a lista poderia facilmente tornar-se uma longa ladainha de aspetos negativos.
Não sou pessoa de ceder ao pessimismo e sei que a história do passado mostraria como, noutras épocas, vivemos situações semelhantes e, talvez, até mais violentas. Gosto de ver a força do Espírito Santo que, nos nossos dias, continua a impulsionar para que se encontre novas formas de evangelização e a suscitar muitos belos testemunhos de fé, cheios de entusiasmo e de dinamismo. Há, contudo, um grande desafio que nos espera a todos: a cultura digital. Precisamos de compreender que estamos no início de uma nova cultura e que a evangelização nos impõe que estejamos conscientes deste grande desafio. Todos os que hoje têm vinte anos são nativos digitais, ou seja, são filhos desta nova cultura que impõe novas linguagens e, por conseguinte, novos comportamentos. Quando se modifica a linguagem, consequentemente também se modifica o comportamento das pessoas. A cultura digital oferece muitas coisas positivas, mas tem também grandes limites. Com o digital superamos as categorias com que sempre pensamos: espaço e tempo. Estas são substituídas por "agora" e "já". A comunicação acontece em simultâneo com várias pessoas, com grupos, e num instante chega ao mundo inteiro. A isto acresce o desejo de fazer com que todos saibam quem somos, o que fazemos, onde estamos, quem são os nossos amigos... deixa de haver privacidade, porque o Facebook é o diário pessoal posto à disposição de toda a gente. Se, em tempos, corríamos para ter a fotografia de uma personagem importante, hoje vivemos mais da exigência de uma selfie que, como a própria palavra diz, mostra que o importante sou "eu" com os outros... não é por acaso que está a crescer, de maneira patológica, o sentido de um forte narcisismo, a ponto de levar alguns filósofos a falar abertamente de uma "ère du vide", a era do vazio! Como ser cristãos neste tempo da cultura digital? Como evangelizar nesta cultura? Estas perguntas não são óbvias, nem para deixar para amanhã. Se não formos capazes de dar resposta a esta interrogação, é difícil pensar que possamos ser eficazes na evangelização das próximas décadas.
Mesmo assim, gostaria de ser sincero convosco. Não estou aqui para falar de técnicas da evangelização, porque não são as técnicas que fazem com que o nosso ministério seja fecundo. Uma vez que a evangelização faz parte da natureza da Igreja, ela é, sobretudo, consequência de um encontro. Em primeiro lugar precisamos de falar do nosso encontro com o Senhor: houve verdadeiramente um encontro? Quando encontrei o Senhor? Que produziu em mim esse encontro? Não são perguntas retóricas; pelo contrário, são a exigência de regressar às nossas origens. Não há data de nascimento, mas ao momento do encontro, de onde tudo nasce: a nossa vocação ao sacerdócio e o propósito de ser ministros do Senhor para a sua Igreja. O ministério que é realizado, antes de mais, pela força do Espírito que desceu sobre nós.
Portanto, evangelizar à luz do nosso chamamento e como consequência do nosso encontro com o Senhor. De certa forma, somos convidados a entrar no grande mistério da existência pessoal e do seu significado, antes de mais para mim individualmente, e, por conseguinte, das pessoas que formam a minha comunidade. O encontro com Jesus introduz na comunidade dos seus discípulos. Uma vida em que a solidão é superada pela força do amor que partilha e que nos torna participantes. À casa da sogra de Pedro, juntamente com ele que tinha todos os títulos para ser uma pessoa de casa, vai também o seu irmão André; Jesus é, certamente, um hóspede de honra; mesmo assim, o evangelista não deixa de informar que Tiago e João também estavam presentes. Não se trata de um bando de gente alegre, como se poderia pensar. É o núcleo da comunidade que se reúne à volta de Jesus e, com Ele, começa a participar em tudo o que faz parte do seu dia-a-dia. Esta imagem deve encontrar também os discípulos de hoje atentos a partilhar estas mesmas exigências.
Com efeito, é neste sentido que Marcos lê o chamamento dos primeiros quatro apóstolos. Precisamos de ir ao contexto mais amplo deste trecho para nos encontrarmos com a descrição do seu chamamento. "Caminhando junto ao mar da Galileia", Jesus viu Pedro e o seu irmão André a consertar as redes: "porque eram pescadores" (1,16). O evangelista não nos diz mais nada. Só o essencial, para não nos distrair. Se quisermos conhecer melhor a cena que está a ser relatada, temos de ir a Lucas. Apercebemo-nos de dois pormenores que não podemos descurar: o primeiro, que "a multidão se comprimia à volta d'Ele para escutar a palavra de Deus" (Lc 5,1); o segundo, que Jesus "viu dois barcos estacionados no lago", porque "os pescadores tinham deixado os barcos e estavam a lavar as redes" (5,2). Lucas não conta logo a desilusão dos pescadores: "andámos na faina toda a noite e não apanhámos nada" (5,5); o facto de Jesus estar a pregar o evangelho à multidão é demasiado importante para o fazer mudar de discurso. Portanto, Jesus sobe para um desses barcos, "que era de Simão", e pede-lhe "para se afastar um pouco da terra" (5,3). O conteúdo daquele ensinamento era, com certeza, o que Marcos relata na sua essencialidade: "Cumpriu-se o tempo (O tempo foi colmado!) e o reino de Deus chegou (está próximo). Convertei-vos e acreditai no Evangelho" (Mc 1,15). Anúncio da salvação realizada por Deus e convite à conversão e à fé como resposta são apenas dois aspetos que dizem respeito ao Reino de Deus que chegou ao meio de nós. Melhor ainda, está tão próximo, que deixa de haver tempo para tergiversar; o kairos é posto nas minhas mãos, para que eu saiba agarrá-lo e viver intensamente.
Só depois do anúncio é que Jesus se dirige a Simão, pedindo-lhe que se faça ao largo e que lance de novo as redes para a pesca (Lc 5,4). Neste momento, Simão não é impertinente. Poderia ter-lhe dito com toda a facilidade: "Mestre, o pescador aqui sou eu, tu és um carpinteiro! É de noite que se vai pescar e não em pleno dia! Além disso, não apanhámos nada durante toda a noite". Não! A reação de Simão não é esta. Depois de ter escutado Jesus a falar, Simão é atraído pelo fascínio que d'Ele emana; o ensinamento de Jesus tê-lo-á, certamente, tocado. Aquelas palavras que o tempo tinha chegado, tocavam-no em primeira pessoa! "Já que o dizes (in verbo tuo, à tua palavra), lançarei as redes" (5,5). Quando o fez, "apanharam tão grande quantidade de peixes que as redes começavam a romper-se" (5,6). A primeira reação é de chamar outros para o ajudar: "Fizeram sinal aos companheiros que estavam no outro barco, para os virem ajudar" (5,7). Quando o trabalho é muito, não podemos fazê-lo sozinhos; corremos o risco de as redes se rasgarem e perdermos tudo. Temos de ter a humildade de pedir ajuda e a generosidade de partilhar o resultado. Os primeiros companheiros que chegam para ajudar são, precisamente, Tiago e João, filhos de Zebedeu; vêm, certamente, por causa da amizade. Também no caso deles, contudo, o fundamento da sua vida reside no facto de Jesus os ter visto (cf. Mc 1,19). O chamamento para partilhar o trabalho vem de Pedro, mas a opção pelo seguimento é graça colocada sob o olhar de Jesus e o seu chamamento pessoal a segui-l'O. Ninguém pode substituir-se ao chamamento. É possível que haja mediações, mas o encontro com Jesus deve ser pessoal: os olhos do Mestre devem estar fixos nos meus e só assim é que o encontro acontece como vocação.
Então, é importante perceber, também a partir destes pormenores, o ensinamento que a Escritura pretende meter-nos nas mãos. Quando se anuncia a Palavra de Deus, as pessoas escutam e estão apinhadas à volta de Jesus, não à nossa volta. Somos chamados a descobrir que a Palavra é, antes de mais, dirigida a nós em primeira pessoa e quer ser acolhida no "barco" da nossa existência. Pede que nos façamos perguntas; sobretudo aquela pergunta fundamental sobre o sentido da nossa vida. Alguém "colmou" o meu tempo; chegou o tempo de me fazer ao largo e de deixar Jesus subir para o meu "barco". Só quando se verifica esta condição é que o trabalho se torna positivo e cheio de sentido. Com Jesus chamamos outros, para que possam participar no nosso trabalho e na nossa experiência de graça que nos foi concedida, não de maneira casual, mas porque Jesus "viu" o meu barco e fez a opção de subir precisamente para ele.
No nosso texto, há ainda um elemento que é tocante; trata-se do verbo no plural: "entram" em Cafarnaum. Parece que Marcos quer dizer-nos, antes de mais, que Jesus não está sozinho. O início da sua pregação já conquistou alguns que, à sua palavra, deixaram tudo e agora O seguem (cf. Mt 19,27). Mas não só. Afirmando que está com os seus primeiros discípulos, também nos leva a compreender que, quando os enviar, para continuar a sua missão, eles deverão lembrar-se sempre de que são discípulos. A indicação ulterior que nos é dada é que estes discípulos começam a deixar algo, para ficar plenamente ao serviço do anúncio. As redes abandonadas, juntamente com o pai e os barcos, são um indicador daquilo que deverão fazer aqueles que, no futuro, virão a ser os novos discípulos do Senhor. Apresenta-se, desde logo, uma radicalidade do seguimento que nos deixa boquiabertos, mas que é possível compreender quando nos damos conta da "novidade" da pessoa a quem nos confiamos e da "autoridade" que possui. Quem anuncia a Palavra de Deus é investido de uma autoridade que vem do alto, mas que requer que quem a aceita seja discípulo, não senhor, nem mestre; sempre e apenas discípulo do único mestre. Não nos esqueçamos, no entanto, que ainda estamos nos inícios do primeiro capítulo. Depois da solenidade das palavras: "Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus" (Mc 1,1), o olhar recai logo naqueles que são chamados a levar esse Evangelho a todos os povos (13,10: "Mas antes disso, deve proclamar-se o Evangelho a todas as nações") e a todo mundo (14,9: "Em verdade vos digo: Onde quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo inteiro, dir-se-á também em sua memória o que ela fez").
Ao contrário de Mateus e de Lucas que se demoram a contar os factos do nascimento de Jesus, Marcos, logo desde os primeiros versículos do seu Evangelho, confere-lhe um cunho evangelizador. Não começa em Jerusalém nem na Judeia, mas na região mais periférica e povoada por pessoas simples e iletradas. Até a simples citação do "Mar da Galileia" tem o seu valor missionário simbólico, porque leva a pensar na ponte com os pagãos: o "território dos Gerasenos" (5,1), o "território da Decápole" (7,31) são lugares onde Jesus vai e onde realiza sinais. Enfim, a relação com o anúncio do Evangelho é imediata, mas composta de maneira que os primeiros quatro discípulos já estejam, de certa forma, diretamente envolvidos. O que nos é dito é que Jesus anuncia uma "bela notícia" que consiste na "proximidade" de Deus, que Deus está "no meio de nós". Não desvalorizemos o uso do termo "notícia"; é de capital importância. Significa, antes de mais, comunicação de um facto! Com efeito, não estamos diante de um ensinamento, nem de uma exortação espiritual, nem muito menos de uma teoria para melhorar a sociedade. Não! A referência à "notícia" serve para sublinhar a verdade que lhe está subjacente: é um acontecimento, um facto que envolve quem escuta e que pede para tomar uma posição.
Voltando aos nossos versículos de Marcos, encontramos a dupla reação de quem escuta Jesus: em primeiro lugar, a admiração; e, depois, a constatação de que é um ensinamento novo e dado com autoridade. O fascínio e a admiração são sinal de um conhecimento sempre novo que vai sendo descoberto. A admiração destrói a apatia e faz com que a vida esteja sempre cheia de entusiasmo. O fascínio empenha-nos a olhar com olhos sempre novos e é inimigo da obviedade, como se tudo fosse sujeito passivo da repetibilidade que conduz ao aborrecimento. Estar diante de Cristo não consente qualquer neutralidade; não podemos encontrar o Senhor e ficar iguais, não é possível, não é aceitável. O encontro com Ele muda a vida e coloca-nos num percurso novo. É verdade, é um caminho que entra no mistério e que, muitas vezes, é a subir, mas nem por isso menos fascinante. Na nossa vida, muitas vezes, podemos verificar que o caminho é interrompido, não encontramos indicações claras, fica a dúvida sobre o lugar para onde caminhamos e qual a direção a tomar. Esse é o momento em que é preciso parar, refletir, observar, olhar mais para o alto como meta a alcançar, e depois retomar o percurso, sabendo que logo a seguir o caminho já vai estar marcado de forma mais clara e que é possível caminhar com mais força e cheios de certeza. Não podemos permitir que percamos o espanto diante das maravilhas que o Senhor realiza em nós e através de nós. Estaríamos a ser injustos com a vocação que recebemos e isso seria nocivo até para a nossa existência.
A segunda reação dos que escutam Jesus é descobrir que o seu ensinamento está cheio de autoridade e novidade (cf. 1,27). Como se pode ver, está estritamente relacionada com a revelação que permite descobrir sempre algo de novo e inédito que estimula a nossa ação pastoral para superar a tentação da repetibilidade. De Jesus aos apóstolos, e depois até nós, é surpreendente encontrar uma incrível continuidade. Aquilo que a Igreja faz não é mais que anunciar Jesus Cristo morto e ressuscitado pela nossa salvação. Precisaríamos de retomar algumas expressões do discurso do Pedro no dia de Pentecostes para compreender a responsabilidade que a Igreja tem e a missão de evangelização que nós somos chamados a continuar. Em plena continuidade com esse texto, está aquilo que Pedro repete, uma vez mais, na sua visita a casa do centurião Cornélio, que lhe abre caminho para compreender a universalidade do anúncio que deve ser feito a todo o mundo: "Pedro tomou a palavra e disse: 'Na verdade, eu reconheço que Deus não faz aceção de pessoas, mas, em qualquer nação, aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável. Ele enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando a paz por Jesus Cristo, que é o Senhor de todos. Vós sabeis o que sucedeu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do batismo que João pregou: Deus ungiu com a força do Espírito Santo e com poder a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo Demónio, porque Deus estava com Ele. Nós somos testemunhas de tudo o que Ele fez no país dos judeus e em Jerusalém; e eles mataram-n'O, suspendendo-O na cruz. Deus ressuscitou-O ao terceiro dia e permitiu-Lhe manifestar-Se, não a todo o povo, mas às testemunhas de antemão designadas por Deus, a nós que comemos e bebemos com Ele, depois de ter ressuscitado dos mortos. Jesus mandou-nos pregar ao povo e testemunhar que Ele foi constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos. É d'Ele que todos os Profetas dão o seguinte testemunho: quem acredita n'Ele recebe pelo seu nome a remissão dos pecados'" (At 10, 34-43). Como não ver nestas palavras o "primeiro anúncio" que somos chamados a fazer? As palavras de Pedro são uma síntese impressionante de todo o querigma.
A Igreja não evangeliza por estar diante do grande desafio da secularização, mas porque deve ser obediente ao mandamento do Senhor de levar o seu Evangelho a toda a criatura. Neste simples pensamento condensa-se o projeto para as próximas décadas em que deveremos ser capazes de compreender plenamente a responsabilidade que compete à Igreja de Cristo nesta particular circunstância da história. A Igreja existe para levar o Evangelho, em todos os tempos, a todas as pessoas, onde quer que se encontrem. O mandamento de Jesus é tão cristalino que não se presta a mal-entendidos de qualquer espécie ou alibi. Aqueles que acreditam na sua palavra são enviados pelos caminhos do mundo para anunciar que a salvação prometida se tornou agora realidade. O anúncio deve conjugar-se com um estilo de vida que permita reconhecer os discípulos de Cristo onde quer que se encontrem.
Como se pode ver - mas seria interessante verificar estes textos com os de Paulo nas suas cartas, a começar pelo discurso no areópago (At 17,22-31) - o conteúdo do querigma é a salvação. Seria complicado voltar a passar todos os textos dos Novo Testamento para verificar como este anúncio é omnipresente e determinante. Paulo fala simplesmente da sua pregação como "palavra da salvação" (At 13,26); a conclusão do discurso de Pedro é simplesmente "Salvai-vos desta geração perversa" (At 2,40); os crentes da primeira comunidade são qualificados simplesmente como "os que eram salvos" (At 2,47). Se este anúncio é tão fundamental, logo vem a pergunta: porque é que, hoje, a nossa pregação esqueceu a salvação? Não se trata de uma pequenina constatação; a salvação é a grande esquecida. Talvez tenhamos de acolher de forma mais consciente a chamada de atenção do Papa Francisco quando fala de uma forma de neopelagianismo: "Este mundanismo pode alimentar-se sobretudo de duas maneiras profundamente relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo autorreferencial e prometeico de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado. É uma suposta segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo antropocêntrico. Não é possível imaginar que, destas formas desvirtuadas do cristianismo, possa brotar um autêntico dinamismo evangelizador" (EG 94). Para o Papa, é isto que tem pegado cada vez mais na nossa vida, deixando de nos fazer compreender o valor da originalidade da fé. A salvação não é uma conquista pessoal, nem um facto que se realiza de forma técnica; é, antes, uma oferta feita por Deus, à qual é preciso responder com todo o nosso ser: inteligência, sentimentos, capacidades pessoais... tudo é dado na opção de fé que se faz para acolher a salvação.
Quantas vezes precisamos de recuperar a frescura do querigma e fazer sempre e só de Jesus Cristo o "primeiro anúncio" de toda a nossa ação pastoral. "Primeiro anúncio" tal com nos é proposto na EG: "Voltámos a descobrir que também na catequese tem um papel fundamental o primeiro anúncio ou querigma, que deve ocupar o centro da atividade evangelizadora e de toda a tentativa de renovação eclesial. O querigma é trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma de línguas e nos faz crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e comunica a misericórdia infinita do Pai. Na boca do catequista, volta a ressoar sempre o primeiro anúncio: 'Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar'. Designar este anúncio como 'primeiro' não quer dizer que ele se situa no início e que, depois, é esquecido ou substituído por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, de uma forma ou de outra, durante a catequese, em todas as suas etapas e momentos. Por isso, também 'o sacerdote, como a Igreja, deve crescer na consciência da sua permanente necessidade de ser evangelizado'" (EG 164). Então, uma nova evangelização, porque é novo o contexto em que vive o homem nosso contemporâneo, muitas vezes, maltratado aqui e ali por teorias e ideologias datadas. Por mais paradoxal que possa parecer, hoje prefere-se impor a opinião mais que dirigir para a procura da verdade. A exigência de uma linguagem nova, capaz de ser entendida pelos homens de hoje é uma exigência da qual não se pode prescindir, sobretudo para a linguagem religiosa tão caraterizada por uma especificidade que, muitas vezes, acaba por ser incompreensível. Abrir a "gaiola da linguagem", para favorecer uma comunicação mais eficaz e fecunda, é, portanto, um compromisso concreto para que a evangelização seja verdadeiramente "nova".
Gostaria de concluir esta primeira reflexão voltando ao tema da eucaristia. É sintomática a expressão que proclamamos depois da consagração. "Mistério da fé". O nosso povo responde: "Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!" É esta súplica, "vinde, Senhor Jesus", que ilumina toda a ação da Igreja e o nosso testemunho. Deveríamos convencer-nos que todo o nosso ministério é vivido no mistério d'Aquele que leva à plenitude aquilo que anunciou. É Ele, Cristo, que leva à plenitude o nosso anúncio. Como Ele diz no Evangelho de João: "Não fostes vós que Me escolhestes; fui Eu que vos escolhi e destinei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça. E assim, tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá" (Jo 15,16). Sempre me impressionou esta expressão. Gostaria que dissesse: "Deis fruto e o vejais". Era bonito. Mas não está escrito. O que Jesus nos diz é, antes, que o nosso fruto permanece como uma semente no coração das pessoas de quem nos aproximamos.
A eucaristia constrói a Igreja de Cristo até ao dia em que Ele vier na sua glória. Vendo a Igreja a partir desta perspetiva parece que estamos perante uma construção ainda por completar. Dia após dia, com o contributo de cada crente, precisamos de fazer o esforço da construção, para nos apresentarmos diante de Cristo como Esposa bela, santa e imaculada. Edificar a Igreja sobre o fundamento da eucaristia equivale a viver a eucaristia como fonte da comunhão eclesial. Neste sacramento envolvemo-nos diretamente na vida de Cristo e temos a certeza da comunhão entre nós. A Igreja não é uma construção de homens. Se assim fosse, estaríamos ainda na situação de Babel, ou seja, da torre que queria tocar o céu onde toda a gente fala e ninguém entende. A Igreja é construção de Cristo eucaristia; por isso, pode abraçar tudo e manter a todos na comunhão. Tudo e todos, mesmo aquilo que paradoxalmente parece ser uma oposição ou aparecer com inconciliável. A eucaristia nunca poderia ser reduzida a um facto puramente privado e individual; seria a sua morte. A eucaristia diz comunhão e participação eclesial ativa, nunca uma posse individualista de Deus. Lembra-o com razão a Sequência do Corpo de Deus: "Sumit unus, sumunt mille: quantum isti, tantum ille: nec sumptus consúmitur. - Seja um, sejam mil, todos o recebem igualmente, nunca é totalmente consumido".
Só com a entrada na comunidade crente é que é permitido receber a oferta da vida divina da graça. É verdade que a decisão de entrar na Igreja é uma opção livre e pessoal, mas é sempre sustentada pela primeiro e originário chamamento por parte de Deus através da sua Igreja. O Espírito atua, permitindo que o chamamento à fé possa corresponder ao desejo de salvação escondido no coração de cada um e realizando a desejada salvação. Não podemos esconder as dificuldades presentes no mundo nem as problemáticas subjacentes à vida dos cristãos neste momento histórico particular. Os graves problemas que fazem parte do nosso tempo, no entanto, não faltaram noutras épocas. Aquilo de que precisamos, talvez, seja a convicção de que temos os instrumentos para poder ultrapassar a fase crítica. A vida de fé, de caridade e de esperança alimenta a contemplação do mistério que somos chamados a viver, e permite que olhemos para o futuro com maior lucidez e perspicácia. Temos de estar convencidos de que a eucaristia é a presença real e eficaz de Cristo ressuscitado no meio de nós. É por isso que a Igreja se pode apresentar, mesmo com todas as nossas contradições, como verdadeira, concreta e genuína continuação do Logos. Compreender que fazemos parte deste mistério de salvação não nos torna melhores que os outros, mas exige que sejamos mais responsáveis, apresentando as razões da fé e vivendo com coerência a vida nova da nossa vocação. É por esta razão que a eucaristia deve ser sempre a fonte, o centro e o cume de toda a nossa existência. Aproximar-se para receber o Corpo de Cristo não pode ser nunca um ato de presunção, como se estivéssemos a participar numa ação pelo facto de sermos melhores que os outros. Comungar o Corpo de Cristo é, antes, admitir que temos uma fé fraca que reconhece a necessidade de ser alimentada por cada palavra que sai da boca de Deus para se fortalecer. A "Palavra" faz-Se realmente "carne" e torna-Se alimento que acompanha e sustenta. Celebrar o mistério eucarístico equivale a aprender a viver fazendo "a vontade do Pai"; assim compreendemos como é possível fazer gestos que, sozinhos, nunca poderíamos realizar. O pão e o vinho transformados em Corpo e Sangue de Cristo, por sua vez, transformam aqueles que deles se alimentam e, pela ação do mesmo Espírito, tornam-nos uma nova criatura, na esperança de novos céus e nova terra.
Um advogado de Lyon, quando regressou da visita a Ars, ouviu um seu interlocutor a perguntar-lhe: "Que viu em Ars?"; a resposta deste ateu foi imediata: "Vi Deus num homem". É uma expressão que faz arrepiar. Como seria significativo se o pudessem dizer também de cada um de nós.
✠ Rino Fisichella
Evangelização e presença dos cristãos na sociedade
Conferência na igreja do Colégio para os Leigos e Consagrados
Madeira, 25 de janeiro de 2022
Caros amigos, em primeiro lugar, queria agradecer ao vosso bispo pelo convite que me dirigiu. Conheço-o há muitos anos e estou contente por poder partilhar com ele e com os fiéis da sua Igreja algumas horas de comunhão fraterna. Queria agradecer também a cada um de vós pela paciência que precisais de ter para me ouvir a falar uma língua diferente da minha e que me impede de me expressar como gostaria com mais naturalidade.
Gostaria de introduzir-me nesta reflexão com as palavras provocadoras de um dos escritores mais significativos, Dostoievski. "O ponto crucial da questão consiste nisto: se um homem, embebido na civilização moderna, um europeu, ainda pode acreditar; acreditar precisamente na divindade do Filho de Deus, Jesus Cristo. É justamente nisto que consiste toda a fé". Estas palavras estão carregadas de provocação e exigem uma resposta. Perguntar-se se o homem de hoje ainda está disposto a acreditar em Jesus como Filho de Deus comporta a questão subentendida: se o homem de hoje ainda sente necessidade da salvação. Aqui está todo o problema para nós, crentes, e para a nossa credibilidade no mundo de hoje. No entanto, esta questão provoca também as pessoas que não acreditam mas desejam dar um sentido à sua vida. Diante de Jesus Cristo não é possível escolher a neutralidade; é preciso dar uma resposta, se quisermos dar um sentido à vida. De certa forma, estamos diante das grandes questões que tocam cada um de nós e, ao mesmo tempo, como se o tempo nunca tivesse passado, encontramo-nos com a simples resposta que oferecemos há dois mil anos: Jesus crucificado ressuscitou. Na sua simplicidade, esta expressão é a síntese de toda a nossa fé. O primeiro anúncio que, também hoje, somos chamados a dar aos homens e às mulheres do nosso tempo é sempre o mesmo: Jesus morreu, mas ressuscitou.
Talvez seja bom voltar a pegar no relato da aparição de Jesus aos Onze na tarde do dia de Páscoa. Conta João que Jesus apareceu aos seus discípulos e, com um gesto insólito, único, soprou sobre eles para lhes comunicar o Espírito Santo e dar o sinal de uma nova criação. Depois deu-lhes o poder de perdoar os pecados. Como é bem sabido, Tomé não estava presente neste momento. Quando regressou, seria expectável que os outros apóstolos lhe tivessem contado os dois sinais extraordinários de Jesus: "soprou sobre nós e deu-nos o Espírito Santo"; "deu-nos o poder de perdoar os pecados". Nem uma nem outra. Os apóstolos não lhe dizem que Jesus lhes deu o poder de perdoar, nem que soprou sobre eles. Nada disto. A única coisa que lhe referiram cheios de alegria foi: "Vimos o Senhor" (Jo 20,25). Extraordinário. Na sua simplicidade, manifesta a verdade do relato: antes de tudo o resto, a experiência tinha sido aquela de ver o Senhor. Esta experiência deveria ser a dos discípulos de Cristo também hoje. Deveríamos ser capazes de anunciar: Jesus morreu e ressuscitou, e nós vimo-l'O. Sem esta experiência de fé vivida, a evangelização torna-se ineficaz e a transmissão da fé estéril. Caros amigos, antes de outras reflexões, o essencial da evangelização é o testemunho pessoal do encontro com Cristo. Tu, encontraste Cristo na tua vida? Esta é a pergunta fundamental para um cristão.
Uma das características peculiares do cristianismo é a conceção de estar profundamente inserido na história. A Igreja não pode ser eficaz na sua obra de evangelização se esquecer dois aspetos que qualificam a sua obra: como entrar na cultura e como criar história. Os dois polos não estão separados. Para permanecer ligados à história do nosso tempo, é necessário observar os fenómenos que obrigam a Igreja a repensar a sua obra de evangelização. Tal como no passado ela se inseriu no contexto cultural, primeiro, da Grécia e, depois, de Roma. Depois foi capaz de chegar às culturas mais longínquas na época da grande história missionária (México, África, Japão e China). Hoje, a Igreja deve pensar como inculturar o Evangelho na nova cultura dos nossos dias: a cultura digital. Pensar na evangelização e olhar para o lado, como se não existisse a exigência da inculturação, é um caminho que não pode ser percorrido. A coragem da evangelização impele inexoravelmente a descobrir novos percursos e a segui-los sob a ação do Espírito, que não pode ser limitado por cálculos claramente humanos. Neste contexto, parece-me que há uma dupla tarefa que, hoje, compete à Igreja na sua obra de evangelização: por um lado, a exigência de transmitir aquilo que "sempre, por todos e em toda parte foi acreditado"; por outro lado, a tarefa de compreender a nova cultura que se apresenta e que determinará os próximos séculos, criando condições para nós impensáveis que nos fazem sorrir porque parecem ficção científica, mas já estão quase a apresentar-se com todo o seu alcance histórico.
Estamos a viver um tempo de grandes desafios, que incidem não pouco nos comportamentos de gerações inteiras, devido ao facto da conclusão de uma época com a consequente entrada numa nova fase para a história da humanidade. A tantos elementos positivos devido ao progresso da ciência e da técnica e a um empenho cada vez mais consciente de tantas pessoas na vida de fé, enfrentamo-nos frequentemente com formas de discriminação e marginalização sociais que, até há umas décadas, nunca tínhamos experimentado. Na mesma linha, estamos a assistir a expressões de um afastamento da fé, consequência de uma forma generalizada de indiferença religiosa, prelúdio de um verdadeiro ateísmo. Muitas vezes, a falta de conhecimento dos conteúdos básicos da fé e da cultura leva a assumir comportamentos e formas de juízo moral em contraste com os princípios pelos quais a civilização se tinha regido ao longo de pelo menos vinte e cinco séculos da nossa história. O relativismo e um profundo sentido de individualismo emergem como nota característica destas décadas cada vez mais marcadas pelas consequências do secularismo que tende a afastar o homem da sua relação fundamental com Deus. Neste sentido, são sobretudo as Igrejas de antiga tradição como as nossas que se ressentem desta condição, criando um deserto interior, porque, de facto, o homem está cada vez mais longe de si mesmo.
Daquilo que podemos observar dos países na variedade das suas culturas e tradições, é fácil verificar uma crise que não é, antes de mais, de ordem económica e financeira. É uma crise, antes de mais, de ordem cultural e, de facto, está a transformar-se numa crise antropológica. O homem está em crise. Parece que já não é capaz de se encontrar a si mesmo e de encontrar a sua identidade. Depois dos elogios de já ter alcançado a idade adulta e de ser plenamente senhor de si mesmo e das suas ações, o homem descobre que está nu, sem defesas, sem saber quem é. Sem um fundamento, viu-se sozinho, também longe de Deus e prisioneiro de um movimento de pensamento de rápido desenvolvimento e de rápidas mudanças que o deixa confuso e sem pontos de referência sólidos para onde se encaminhar. É neste contexto que se pode perceber também o limite do momento presente submetido a um acontecimento inesperado para uma época como a nossa que vive do primado da técnica e da ciência: a pandemia que está a atingir o mundo inteiro. Os limites colocados à liberdade pessoal e a obrigação de rever algumas conquistas alcançadas nas últimas décadas colocaram fortemente também o tema da evangelização em tempos de Covid. O coronavírus modificou os ritmos da nossa vida quotidiana. Estamos diante de um desafio sanitário, mas com recaídas económicas, humanas e espirituais. Embora até hoje não seja possível prever a real medida da crise, ela continua a ser um grande desafio. Parece-me, todavia, que estão a emergir alguns sintomas que acompanham a pandemia: o medo, a falta de segurança, a solidão... enfim, de repente, muitos deram-se conta da vulnerabilidade e da fragilidade; muitas seguranças desfizeram-se e o estilo de vida foi colocado em discussão no mundo inteiro. Inesperadamente, vimo-nos imersos no tema da morte e da doença, da ameaça que paira sobre a vida e sobre a saúde a ponto de nem se poder visitar os nossos familiares doentes e nem sequer participar nos funerais.
Tudo isto trouxe para debate também o grande tema da necessidade de Deus. Temos de ser sinceros: hoje, já não existem as grandes formas de ateísmo tal como as experimentámos no passado. A crise dos nossos dias é determinada por poder e saber falar de Deus; é algo que não pode deixar-nos ficar na neutralidade. Deus, hoje, mais que negado, é desconhecido. Há milhares de jovens que afirmam sem problemas que são agnósticos. Provavelmente, nesta expressão há algo de verdadeiro acerca da maneira como o homem nosso contemporâneo se posiciona diante de "Deus". De certa forma, poderia dizer-se que, nestes anos, cresceu o interesse pela religião. O que, todavia, dá mostras da forte conotação emotiva e da sua declinação no plural. Não há interesse pela religião; o que parece prevalecer, hoje em dia, são, antes, as experiências religiosas. Enfim, vai-se à procura de várias modalidades religiosas selecionadas de tal modo que cada um apanhe o que mais lhe agradar a fim de atracar numa experiência religiosa que seja satisfatória para os seus interesses e para as suas exigências do momento. Não basta ficarmo-nos pela análise estatística da ausência de Deus na vida das jovens gerações. É necessário ir mais ao fundo, ir para além daquilo que os números indicam, para compreender qual a imagem de Deus que estamos, hoje, a oferecer. Uma vez, estava hospedado em casa de uma família, quando, a certa altura, o pai e a mãe, extremamente preocupados porque a filha adolescente lhes tinha manifestado a sua intolerância em relação à religião e já estava a começar a dar os primeiros sinais - diziam eles - de profissão de ateísmo, apresentaram-me a filha, dizendo-lhe que falasse comigo. A rapariga, sem qualquer receio, começou a dizer-me que não acreditava em Deus. Com muita simpatia, fixei nela o meu olhar e limitei-me a perguntar-lhe: "Em que Deus?". Para grande surpresa de todos, o discurso ficou por ali. Contudo, a questão que coloquei pretendia ser uma provocação para chegar ao núcleo da questão: de que Deus estamos a falar? Qual a imagem de Deus que estamos a apresentar às novas gerações? Se não resolvermos este enigma, o caminho da evangelização ficará empantanada na armadilha do saudosismo do passado ou na fantasia acrítica de uma razão mais que anestesiada.
Deveríamos ser capazes de lançar uma pedra no charco: o charco da indiferença, que, muitas vezes, domina o contexto cultural sobre esta problemática, e o da obviedade, que evidencia quanta ignorância domina, de forma muitas vezes soberana, sobre os conteúdos religiosos. Infelizmente, a indiferença e a obviedade corroem pela base aquele senso comum religioso que ainda existe, enfraquecendo cada vez mais a questão sobre Deus e, sobretudo, a opção consciente e livre da fé. Vem-me imediatamente à mente a cena de Paulo pelas ruas de Atenas (At 17,16-34). As coisas não mudaram muito desde então. As estradas das nossas cidades estão cheias de novos ídolos. Parece que o interesse por um sentido religioso genérico quer ganhar uma espécie de desforra; com efeito, as expressões religiosas que se vão multiplicando, muitas vezes, não têm força de pensamento. Em alguns casos, é a emotividade que vai ganhando terreno; noutros, pelo contrário, são algumas formas de fundamentalismo. Tanto um caso como o outro apenas evidenciam a falta de densidade intelectual. Neste contexto, precisamos de nos perguntar quem são os novos Paulos de Tarso, com a consciência de serem portadores de uma boa notícia que entra no areópago do nosso pequeno mundo com a convicção e a certeza de querer anunciar o "Deus desconhecido".
Tirando Deus de cena e tornando superficial a experiência religiosa, o homem perdeu-se a si mesmo. O desejo da procura do rosto de Deus, que desde sempre marca a ânsia mais profunda do coração humano, tem vindo a tornar-se cada vez mais fraco e a distância dele cada vez mais vistosa. O único rosto que continua refletido é o da própria pessoa. Pouco. Demasiado pouco para nos podermos definir como adultos e autónomos. Refletir o próprio rosto pode até ter satisfeito o narcisismo cada vez mais dominante que carateriza os nossos tempos, mas por fim veio-se a descobrir que, naqueles poucos centímetros quadrados, a tristeza tinha levado a melhor e o drama da vida voltar a propor-se com maior intensidade ainda. Sim! O drama da vida, porque é disso que se trata. Sozinho, o homem morre antes do tempo. Quando perde a relação com os outros, deixa de ser pessoa e fica apenas um indivíduo, uma mónada sem qualquer possibilidade de sobrevivência, porque é incapaz daquele amor que gera, e a tristeza leva a melhor. O círculo conclui-se assim. De maneira triste, mas inequívoca. Se Deus for relegado para um canto, o mais obscuro e afastado da vida, o homem perde-se a si mesmo, porque deixa de fazer sentido relacionar-se consigo mesmo e, mais ainda, com os outros. Por mais paradoxal que possa parecer, o homem de hoje é um homem só. Por isso mesmo, é preciso trazer Deus de novo para o centro. Se não quisermos propor isto por um motivo de natureza religiosa, dever-se-ia fazê-lo, pelo menos, para voltar a dar oxigénio a um homem sofredor. As imagens de divertimento paroxísmico e de ruído que, muitas vezes, inundam os nossos dias, e sobretudo o fim de semana, mais não são que o sinal evidente de um homem em profunda crise, porque se entrega ao vazio e ao efémero. Se quisermos sair da patologia que corrompe a vida e voltar a encontrar o lugar central, é preciso ter a capacidade de restabelecer a responsabilidade pela transmissão da fé que envolve as gerações.
Como já antes fizemos notar, a ciência e a técnica introduzem-se cada vez mais em horizontes que, até ontem, pareciam inatingíveis. Ainda assim, quanto mais nos adentramos na apropriação do cosmo, mais se torna premente a questão acerca do sentido da vida e do destino do mundo. A um homem cada vez mais submetido ao predomínio da tecnologia que, quer queiramos ou não, determina as fases fundamentais da vida, é quase instintiva a referência à ciência e à tecnologia para a solução de todos os problemas. A "máquina" assume cada vez mais poder até ao ponto de estabelecer, mesmo por via legislativa, quando é que estamos na presença da vida e da morte, quando se pode fecundar uma célula e quando é que se podem extrair órgãos. Em todo este horizonte, parece que o mistério da existência pessoal se vai desvanecendo diante do poder da técnica, a ponto de parecer que o entusiasmo pela beleza das emoções está cada vez mais perto de desaparecer, e o homem vê-se súcubo de objetos que já se tornaram uma prótese insubstituível como é o caso do telemóvel.
Contudo, a questão sobre o sentido da vida permanece inalterada, sem qualquer possibilidade de a poder pôr de parte, a não ser por um breve espaço de tempo. As interrogações continuam a ser as mesmas: "quem sou eu neste mundo?" "para onde vou? e com que objetivo?" "será que ainda é possível amar e ser amado para sempre?", "será que existe uma vida depois da morte?"; então, hoje, justamente em virtude da máquina, sentimos cada vez com maior frequência a pergunta: "Porque não me deixas morrer?". A obsessão com o uso da técnica e com a sua influência sobre a vida de cada um só pode dar mais força à procura de sentido e do mistério que envolve toda e qualquer existência pessoal. Tudo isto leva a afirmar com maior convicção que, apesar de o homem do século vinte e um (século XXI) ser um impenitente racionalista, sobretudo na cultura tecnicizada, ele sente necessidade do mistério e do inefável; percebo-o com lucidez; por vezes, deseja-o porque não o encontra, e reconhece que tem com ele uma ligação que nada nem ninguém poderão algum dia quebrar.
A supremacia da tecnocracia pode ser redimensionada, se trouxermos a debate, com toda a força, a presença do mistério que põe questões às quais a técnica e a ciência não podem responder. De certa forma, justamente perante os dramas que a humanidade experimenta diante do poder da criação, a técnica mostra a sua impotência, a sua fraqueza e o seu próprio limite. Por um lado, a ciência faz progressos, e a técnica cria condições para melhorar a vida; por outro lado, mostra-se, de maneira ainda mais dramática, a fraqueza que é companheira de vida da existência humana e que não poupa ninguém do limite e da contradição. O caminho da evangelização pode ser retomado justamente a partir deste termo que para nós é fundamental: mistério. É bom deixar já bem claro que mistério não é algo que não se compreende. Este significado surge essencialmente quando, a partir do século dezassete (século XVII), se coloca a razão como o fundamento de todo o saber. Se algo ficar de fora da razão, então é mistério. Mas para o pensamento bíblico, o mistério é algo que é revelado e dado a conhecer! O mistério é expressão de um conhecimento sempre novo. Acolher o mistério com seriedade equivale a entrar num caminho árduo, mas nem por isso menos necessário. É um caminho que percorre etapas que, de tempos a tempos, vão marcando o percurso realizado. Uma primeira etapa impõe que se saiba enfrentar a realidade, embora esta se mostre velada e escondida. Uma segunda sabe enfrentar o desafio da razão que interroga e põe questões, ainda que com a consciência de que o próprio intelecto possui um horizonte finito, mas nem por isso abdicatário. Uma terceira procura descobrir as "razões do coração" para entrever entre as dobras se este mistério é plausível e, mais ainda, se é credível. Uma quarta etapa sabe fazer da contemplação o caminho privilegiado para entrar com coerência dentro do próprio mistério e, assim, constatar a sua eficácia. Uma última, por fim, pede o ato do abandono como exercício extremo de liberdade que chega no término de um caminho onde tudo foi verificado com todos os meios à disposição. Em virtude deste percurso, a decisão de acolher em si o mistério e de se abandonar a ele é satisfatória, porque deixa de haver outra alternativa para encontrar o sentido definitivo para a própria vida. Voltam à mente, com uma atualidade surpreendente, as palavras cheias de significado que a Gaudium et spes colocou como chave interpretativa do seu multifacetado ensinamento: "Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente... Cristo, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime" (GS 22). Tudo gira à volta do "mistério": o de Cristo, o do Pai, o do amor trinitário, o do homem... tudo está inserido no mistério e nele encontra a sua compreensão mais coerente e definitiva. Portanto, não podemos afastar-nos do mistério, nem ter receio de o pronunciar no início da nossa fé; não no fim, quando estamos confusos e transtornados por termos deixado que fosse a razão sozinha a querer compreender tudo, concluímos que é mistério.
Um texto de Aristófanes (século III a.C.) pode ajudar-nos a compreender melhor o uso do mistério na evangelização: "Foram chamados mistérios pelo facto de que quem ouvia tinha de fechar a boca e não contar nada disso a ninguém. Na verdade, μύειν quer dizer fechar a boca". Este texto, juntamente com outros testemunhos que se encontram em Heráclito e em Ésquilo, levam a concluir que, muito provavelmente, este termo deriva semanticamente do grego muein (μύειν), fechar os lábios e, portanto, calar-se, ficar calado. Em poucas palavras, o conteúdo do mistério requer silêncio. Não é uma contradição introduzir o valor do silêncio quando se fala da evangelização que requer o anúncio e a comunicação. Também o silêncio é uma forma de linguagem; ou melhor, é a melhor expressão da linguagem. O silêncio não é a ausência de palavras, mas a capacidade de dar sentido às palavras. No caminho da evangelização que somos chamados a percorrer para encontrar novos percursos, sinto que devo propor, antes de mais, o valor do silêncio como a forma mais adequada. Quando se encontra Cristo, a primeira reação não pode ser a de falar, mas de escutar. Quando nos colocamos diante da Palavra de Deus, não podemos colocar em primeiro lugar a nossa interpretação, mas escutar o que essa Palavra de vida diz a cada um de nós. O silêncio ensina a exigência da escuta que reconhece o primado de Deus. Num período em que somos atropelados pelas palavras, pelos talk shows, pelos ruídos permanentes que encontramos por toda a parte, estou a propor a via do silêncio como condição necessária para escutar e, depois, anunciar.
Deus fala também através do silêncio. Recordava-o com palavras apropriadas, nos alvores do cristianismo, Santo Inácio de Antioquia, quando escrevia: "De facto, há um único mestre, Aquele que falou e o que Ele disse foi feito. E as coisas que Ele fez, estando calado, são dignas do Pai. Aquele que possui verdadeiramente a palavra de Jesus pode escutar também o seu silêncio" (Ad Eph. XV,1-2: PG V, 657-658). O silêncio pertence plenamente à revelação de Jesus e ao seu Evangelho. Não quer dizer: não ouvir a sua voz; mas quer dizer: aperceber-se do seu silêncio como a palavra mais alta à qual dar ouvidos. Em Jesus de Nazaré o silêncio de Deus abre-se a uma palavra definitiva sobre a sua vida. Ele é a Palavra de Deus; parece que cessa o silêncio. Mesmo assim, várias expressões dos Evangelhos mostram que, nesta palavra, ainda existe o silêncio da revelação. O falar de Jesus é também o seu silêncio; nele se descobre a dimensão talvez mais profunda da sua revelação. É uma vez mais o texto de Inácio de Antioquia a fazer luz a este respeito: "É melhor ficar calado e ser, do que falar e não ser. É bom ensinar, se quem fala, faz. De facto, há um único mestre, Aquele que falou e o que Ele disse foi feito. E as coisas que Ele fez, estando calado, são dignas do Pai. Aquele que possui verdadeiramente a palavra de Jesus pode escutar também seu silêncio, para ser perfeito, para realizar o que diz ou para ser conhecido pelo seu silêncio." (Ad Eph. XV,1-2: PG V, 657-658). Portanto, não é o silêncio enquanto ausência de palavras, mas o silêncio do amor que fala ao coração e de que só quem ama consegue dar-se conta. Quanto mais crescer em nós a presença de Deus, mais as palavras deixam de ter importância, porque são substituídas pelo silêncio do amor em que Deus se torna presente. Lembrava-o Santo Agostinho com uma expressão sintomática: Verbo crescente verba deficiunt. Quanto mais cresce em nós o Verbo, mais desaparecem as palavras.
Caros amigos, somos chamados a refletir sobre a nossa capacidade de poder criar um processo de transmissão dos valores e dos conteúdos que formam a identidade dos nossos povos, para que estes se radiquem de modo a permitir um significativo sentido de pertença a uma realidade nova ainda que antiga. Nós, católicos, não recuamos nesta assunção de responsabilidades e não aceitaremos ser marginalizados. Com efeito, estamos convencidos de que a nossa presença no mundo é essencial. Não podemos ser substituídos por mais ninguém a transportar aquele contributo peculiar que nos pertence e que, ao longo dos séculos, marcou uma incomparável história de humanização. Sem a presença significativa dos católicos, o mundo seria mais pobre e menos atraente. Não queremos que isso aconteça; por isso, pedimos para ser escutados e postos à prova para verificar uma vez mais a riqueza do nosso contributo para o genuíno progresso do pensamento e da sociedade. A esperança que trazemos tem algo de extraordinariamente grande, porque permite encarar o presente, mesmo com as suas dificuldades, com um olhar cheio de esperança e de serenidade. É a esperança que não desilude porque contém a força de uma promessa de vida que supera todos os limites e procura fixar o olhar no único necessário: um Deus que ama e que partilhou a nossa existência humana.
✠ Rino Fisichella
A participação dos leigos na vida eclesial
Conferência na igreja do Colégio aos Leigos e Consagrados
Madeira, 26 de janeiro de 2022
Caros amigos, ontem procurei apresentar uma primeira consideração sobre a presença dos leigos na evangelização. Procurei descrever, antes de mais, o contexto cultural em que nos encontramos e a importância do silêncio e da escuta como condições essenciais para que a evangelização seja fecunda. Hoje, gostaria de continuar a procurar dar mais um passo. Há uma expressão de que gosto muito. Está na Lumen gentium, a Constituição do Concílio sobre a Igreja, que diz: "Os leigos são especialmente chamados a tornarem a Igreja presente e ativa naqueles locais e circunstâncias em que só por meio deles ela pode ser o sal da terra" (LG 33). Justamente este inciso: "só por meio deles", deveria provocar seriamente a nossa reflexão sobre o contributo peculiar que os leigos são chamados a realizar. Há ambientes e contextos a que mais ninguém poderá aceder, a não ser os leigos e leigas que, com a sua vida profissional, são capazes de dar testemunho da fé. A sua presença nestes ambientes é insubstituível e só eles são capazes de levar aquela primeira forma de humanização que, muitas vezes, é o necessário prelúdio para falar de Jesus Cristo.
Não se pode fazer nova evangelização sem novos evangelizadores. Não é uma tautologia, mas uma evidência que não podemos considerar como óbvia. Na Carta de São Paulo aos Romanos, encontramos escrito: "Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Mas como hão de invocar Aquele em quem não acreditam? E como hão de acreditar n'Aquele de quem não ouviram falar? E como hão de ouvir falar, se não houver quem lhes pregue? E como hão de pregar, se não forem enviados? Está escrito: Como são formosos os pés dos que anunciam o Evangelho!" (Rm 10,13-15). Como se pode ver, o apóstolo queria a relação entre a necessidade de invocar o Senhor, ou seja, de ter fé n'Ele, e ser enviados para O anunciar de modo que todos possam acreditar. Como fundamento desta missão coloca-se o chamamento; este estende-se desde a invocação à missão, porque reconhece que Jesus é o Senhor de tudo e de todos. Ser evangelizador é, portanto, uma vocação para que todos possam escutar o Evangelho de Jesus, acreditar n'Ele e invocá-l'O. Este chamamento nasce no próprio dia do batismo e, por ele, cada crente em Cristo é chamado a tornar-se portador credível da boa notícia que o seu ensinamento encerra. Ser enviados é, portanto, algo intrínseco à vocação batismal; esta comporta para cada cristão a assunção de responsabilidades em primeira pessoa sem qualquer possibilidade de delegação. O anúncio do Evangelho não pode ser delegado; requer, pelo contrário, a consciência pessoal do crente de se tornar portador de Cristo onde quer que que vá. Temos testemunhos desta convicção mesmo nos escritos mais antigos. O Bispo de Jerusalém, São Cirilo, dizia assim nas suas catequeses: "Tendo recebido em nós o seu corpo e o seu sangue, transformamo-nos em portadores de Cristo". O cristão é, portanto, por sua natureza um cristóforo e só assim consegue compreender as palavras do senhor: "Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve" (Mt 11,29-30). O jugo a que Jesus Se refere não é mais que o convite para nos tornarmos seus discípulos e para partilhar da sua própria vida; portanto, tomar parte na sua missão de salvação.
Em virtude da sua própria natureza, portanto, a Igreja é chamada a ir por todo o mundo a anunciar o Evangelho. A expressão de Paulo VI: "A rutura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época" (EN 20), por um lado, manifesta o núcleo da questão com a qual nos devemos confrontar; por outro lado, incentiva a refletir sobre como podemos e devemos conferir densidade cultural à nossa experiência de fé. Foi mais uma vez Paulo VI quem escreveu: "o mundo sofre por falta de convicções" (PP 85). Por este motivo, sem retórica, devemos reiterar que é necessário que os cristãos tenham nova consciência, que se tornem capazes de entrar no coração das culturas, de as conhecer, compreender e orientar para aquele desejo de verdade que pertence a cada homem e a cada mulher à procura do sentido da sua própria vida. De certa forma, no passado era mais fácil transmitir o Evangelho. As nossas famílias viviam num contexto social em que a comunicação dos valores estava firmemente impressa num estilo de vida sólido que consentia a receção de uma mensagem unitária nos diversos contextos da formação: família, escola e comunidade cristã viviam de uma circularidade impressionante que permitia a transmissão de conteúdos como uma só voz. O contexto de fragmentação cultural de hoje em dia, pelo contrário, unido à pluralidade de posições e sobretudo a diversificação das linguagens, impõe uma atenção e um trabalho maiores.
Neste contexto, não se pode esconder a diversidade geracional que exige que se encontre instrumentos capazes de tornar a evangelização dinâmica e eficaz. O risco de não conseguir sintonizar-se com as jovens gerações, por exemplo, é um facto sério e problemático. O grande desafio que toca a igreja, hoje, é a cultura digital. Ela encontra o seu espaço a nível global e impõe-se cada vez mais, modificando as nossas linguagens e comportamentos. Também esta expressão impõe uma forma de inculturação do Evangelho, como aconteceu no passado com as diversas culturas com as quais nos encontrámos. Escusado será dizer que nos impede de encontrar álibis, de modo a permanecer encerrados nas nossas comunidades. A Internet representa uma oportunidade de diálogo, de encontro e de intercâmbio entre as pessoas, além de ser um acesso à informação e ao conhecimento. Muitos já falam do digital como uma forma direta de cidadania ativa; e, de facto, ela facilita a informação independente mostrando, muitas vezes, as violações dos direitos humanos. Entre outras coisas, encontra-se a extensão das capacidades cognitivas pessoais. A tecnologia digital, como se pode ver a cada dia, ajuda à memória, permite a arquivação e a restituição dos dados em tempos impressionantes e ajuda certamente a vida social e pessoal. Estamos a participar numa verdadeira transformação antropológica. Os nativos digitais, ou seja, as pessoas que nasceram e cresceram com estas tecnologias, já as consideram como um facto natural, privilegiam a imagem mais que a escuta com a consequência de uma evidente redução do seu desenvolvimento crítico. O consumo de conteúdos digitais não é apenas quantitativo, mas qualitativo, porque produz uma nova linguagem, um novo modo de organizar o pensamento e, obviamente, os comportamentos que dele derivam. Tudo isto torna evidente a diferença com muitos entre nós, os imigrantes digitais, que somos ainda apenas fruidores e os consideramos de facto apenas instrumentos.
A cultura digital apresenta-se também como portadora de credos com características religiosas. O caráter pervasivo dos conteúdos digitais, a difusão de máquinas que funcionam autonomamente com algoritmos e software cada vez mais sofisticados levam a perceber o universo como um fluxo de dados e a compreender a vida no horizonte de algoritmos bioquímicos. Estamos diante de uma modalidade inédita, que muda as coordenadas de referência em relação ao reconhecimento de alguém a quem dar confiança e autoridade. O modo com que se pede a um motor de busca, aos algoritmos de uma inteligência artificial ou a um computador algumas respostas sobre questões que dizem respeito à vida privada revela que nos estamos a relacionar com a máquina e com a sua resposta com uma atitude fideísta. Como observava o sínodo sobre os jovens: "O mundo digital é também um território de solidão, manipulação, exploração e violência, até ao caso extremo da dark web. Os media digitais podem criar dependência, isolamento e progressiva perda de contacto com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas. Novas formas de violência difundem-se através das redes sociais". Fortes interesses económicos, além disso, atuam no mundo digital e são "capazes de fomentar formas de controlo tão subtis como invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático" (CV 88-89). Como se pode ver, nem tudo o que reluz é ouro!
Para a Igreja, que se abre a uma nova fase da evangelização, este é um desafio a não perder. A verdadeira questão que devemos colocar-nos diante desta nova cultura não é como utilizar as novas tecnologias para evangelizar, mas como nos tornarmos uma presença evangelizadora no continente digital. Por exemplo, como podemos ser capazes de ajudar a descodificar os milhões de dados que quotidianamente são recebidos? E como apoiar a procura da verdade em vista de uma coerente resposta à questão sobre o sentido da vida? É urgente conhecer o poder do meio e usar todas as suas potencialidades e positividades, mas não pode falhar a consciência de que não se faz evangelização usando apenas os instrumentos digitais. A evangelização é chamada a oferecer espaços de experiências de fé, em que o encontro interpessoal é verdadeiramente a carta vencedora. De contrário, estaremos diante de uma virtualização da evangelização que acaba por se encostar a outros mundos virtuais experimentados, todavia, com um risco real de uma evangelização fraca e ineficaz.
Aquilo que vejo pessoalmente no horizonte, precisamente em virtude da nova evangelização e da transmissão da fé, é a exigência de criar um modelo antropológico capaz de realizar a necessária síntese entre aquilo que é fruto da conquista dos séculos anteriores e a novidade do nosso presente. É importante trazer o homem de volta a si mesmo e, na medida do possível, levá-lo a compreender a sua grande responsabilidade em relação ao mundo e à natureza. Uma nova forma de humanismo para restituir dignidade à vida e para fazer compreender que o homem está verdadeiramente no centro do cosmo na medida em que está junto de Deus, não longe d'Ele. Saber falar de Deus num modo que possa ser acolhido pelo homem de hoje. Parece-me que um caminho que pode ser percorrido com eficácia é o da beleza. A via da beleza perspetiva-se como o caminho privilegiado para poder pensar Deus "de modo mais elevado" e comunicá-l'O ao homem nosso contemporâneo. O querigma precisa de ser traduzido em categorias estéticas, de modo a identificar a linguagem mais coerente. Como sabemos bem, não estamos a partir do ano zero. A via da beleza, enquanto forma de evangelização, tem a sua história que merece ser conhecida. Como seria significativo voltar a percorrer as várias etapas que marcaram a via da evangelização através do belo. A beleza transmitiu o Evangelho de geração em geração e ele foi anunciado a todos aqueles que ainda estavam às escuras em relação a ele. Não foi um percurso fácil, mas foi certamente fecundo. Em todas as catedrais medievais, que ainda hoje podem ser admiradas, é fácil verificar o empenho dos artistas na sua obra de evangelização. A beleza das esculturas que descrevem as cenas bíblicas e as vidas dos vários Santos conjuga-se harmoniosamente com as dos demónios e dos "monstros". Os "monstros" que oprimiam os sonhos do homem medieval e tudo aquilo que tinha valor apotropaico encontrava a sua purificação na beleza da escultura que dava vida nova e infundia um sentido de serenidade, porque inseria também aqueles desvios na síntese suprema da beleza de toda a criação enquanto revelação da beleza divina.
Tal como noutras épocas, vale também para a nossa, talvez tenhamos chegado ao outono da beleza sem podermos fazer mais do que constatar o seu declínio atual. Basta observar a construção de muitas igrejas para tocar com a mão a impossibilidade da evangelização através da via da beleza. Feitas de cimento, sem qualquer chamamento à transcendência, tornam-se lugares para a celebração do culto sem que, todavia, permitam ao crente elevar-se, porque este fica prisioneiro de uma horizontalidade imanente sem possibilidade de fuga. A luz natural que se libertava dos vitrais antigos foi substituída pela frieza das pequenas lâmpadas led colocadas, muitas vezes, sem qualquer lógica. O desleixo dos vasos sagrados e das vestes litúrgicas, por fim, impede que se colha o fascínio do sagrado que se está a celebrar. É uma situação embaraçante e paradoxal. Este momento histórico parece, de facto, arrebatado pelo forte sentimento com que exprime a saudade da beleza. Esculpindo a pedra e jogando com irradiação da luz que se infiltrava através das cores dos hospitais, os antigos exprimiram a harmonia que arrebatava para a contemplação de uma beleza transcendente e habilitava o crente para se elevar na oração e na contemplação do mistério. Esta beleza obtida fala ainda hoje e suscita emoções, talvez ainda maiores, embora, muitas vezes, não encontre correspondência remetendo para a fé que a tinha suscitado e realizado.
Talvez tenha chegado o momento de conjugar com urgência a beleza com a bondade e a verdade. Daí derivaria, de forma quase espontânea, a recuperação de uma visão religiosa da existência pessoal que não minaria, de facto, a conquista científica, mas elevaria o seu horizonte porque restituiria aquela dimensão de humanidade que desapareceu com o predomínio da técnica. A procura de sentido encontraria finalmente o lugar favorável onde poder repousar porque encontraria a resposta coerente, para lá das várias formas de moralismo asfixiante a que hoje estamos a assistir, numa fé genuína e fecunda. A beleza reconcilia o homem consigo mesmo. Com efeito, permite que ele experimente de novo a beleza da natureza da qual ele saiu com um processo dramático, só para se colocar no centro. É um caminho de reconciliação que enxerta cada um numa abertura ao transcendente e lhe oferece um horizonte de sentido não parcial e fragmentário, na medida em que está centrado no próprio limite pessoal, mas definitivo e que tudo abrange, porque está fundamentado em Deus. Por isso é que a saudade de Deus se torna grande.
Poder-se-ia retomar neste sentido o que está descrito no livro do Êxodo, porque não faz mais do que dar voz ao desejo do homem de querer ver Deus e ter certeza da sua presença, embora ao mesmo tempo evidencie o quanto é precária a condição humana e limitada a capacidade de querer possuir o mistério de Deus. Conhecemos a ousadia de Moisés que, com insistência, parece querer exigir algo que, à partida, parece ser impossível de conseguir: ver Deus - "Mostra-me o teu rosto". Deus dá uma resposta dupla. Antes de mais, diz-se: "Farei passar diante de ti todo o meu esplendor e proclamarei na tua presença o nome do Senhor. Concederei a minha benevolência a quem Eu quiser e usarei de misericórdia com quem for do meu agrado" (Ex 33,19). É pena que a tradução prefira utilizar o termo "bondade", porque neste caso a coerência, sem forçar nada, preferiria o termo "beleza". Portanto, Deus mostrará toda a sua beleza e, juntamente com ela, pronunciará também o seu nome que se condensa na misericórdia. A segunda resposta que Deus dirige a Moisés constitui, de certa forma, uma condição: "Mas tu não poderás ver o meu rosto, porque ninguém pode ver-Me e ficar vivo... Há aqui um lugar junto de Mim. Sobe para este rochedo. Quando passar a minha glória, esconder-te-ei na cavidade do rochedo e cobrir-te-ei com a mão, até que tenha passado. Depois retirarei a mão e ver-Me-ás pelas costas, mas não verás o meu rosto" (Ex 33,20-23). É interessante observar o texto de perto. Deus vem em auxílio de Moisés. Este não deverá sucumbir diante da visão do rosto de Deus, porque o colocará num lugar "próximo" de Si mesmo. Quanta ternura que esta conotação consegue passar. Deus ajuda a compreender não só que está presente, mas que está próximo do profeta e que o sustenta no momento mais decisivo da teofania. Moisés, portanto, será protegido pela cavidade do rochedo e pela mão de Deus. Todavia, verá as suas costas depois de Ele ter passado. O desejo de Moisés é atendido apenas em parte, porque é preciso respeitar a liberdade do plano de Deus: "o meu rosto não pode ser visto".
O texto não deixa espaço para muitas divagações. Com base nos termos por ele utilizados, é possível verificar que se trata de uma perspetiva dinâmica. Diferentemente de outras teofanias, aqui a linguagem utilizada é dinâmica; por três vezes se repete a ação do "passar". É fácil imaginar o quanto esta leitura está distante da apresentação de Deus oferecida, por exemplo, por são Tomás na sua primeira prova da existência de Deus. Deus não é o "primeiro motor imóvel", mas é Aquele que caminha, passa, Se aproxima... enfim, é um Deus em movimento que pede que O sigamos. Na sua Vida de Moisés, Gregório de Nissa faz-se intérprete fiel desta tradição bíblica quando escreve: "Quando Moisés anseia por ver Deus, recebe o ensinamento de como é possível ver Deus: seguir Deus aonde quer que Ele conduza, isto é ver Deus. A sua 'passagem' indica que Ele guia aquele que O segue. Quem ignora o caminho não pode percorrê-lo em segurança a não ser seguindo atrás de alguém que o guia. Por isso, aquele que guia, indo à frente, mostra o caminho àquele que O segue".
Todos aqueles que desejam ver Deus, enfim, precisam de se pôr no caminho do seu seguimento; só assim poderão conhecê-l'O. Colocar-se diante de Deus e decidir o caminho que Ele deve percorrer para responder às exigências do homem é algo que não favorece a liberdade pessoal, mas torna ainda maior a distância. A cena dos dois discípulos que, por indicação de João Batista, seguem Jesus apenas vem reiterar este conceito (cf. Jo 1,35-39). Em termos estéticos, dir-se-ia simplesmente que, diante da beleza, é necessário deixar-se arrebatar para chegar ao conteúdo que ela exprime.
Como se pode observar, o Deus escondido e negado retoma o seu lugar. Deus não Se impõe como um velho, que aponta com o dedo indicador em riste para julgar, mas com o rosto radiante da beleza do Filho que oferece amor. Uma vida que permite voltar ao íntimo de cada um e descobrir que Deus nunca Se tinha afastado de nós, mas nos estava a proteger na cavidade do rochedo com a sua mão. Com efeito, a imagem anterior do Êxodo faz lembrar um lugar que para os cristãos é sinal privilegiado da presença de Deus: a igreja. Devolver a beleza às nossas igrejas é um compromisso eficaz de evangelização. O homem é levado de novo ao silêncio, mas num espaço em que pode perceber a presença do divino. A beleza de uma igreja e da liturgia que aí se celebra podem voltar a ser o caminho para uma evangelização que oferece certeza do amor de Deus que não abandona o seu povo, mas permanece próximo dele e o protege. A nossa história está cheia deste desejo para dar voz à beleza do amor, porque, no cume de cada outra manifestação pessoal, faz confluir a beleza na comunhão com a pessoa amada e com Deus, fonte de todo o amor, que desagua na alegria de viver. Por outro lado, só a beleza é condição para manter intacta a alegria e a serenidade que brotam da perceção e da contemplação do amor que se torna visível.
Transmitir a fé equivale, portanto, a transmitir um estilo de vida como testemunho de fiel de termos fixado o nosso olhar no rosto de Jesus Cristo e de nos termos tornado seus discípulos. Esta comunicação, nos nossos dias, não é fácil; e, mesmo assim, é determinante. A nós cabe a tarefa de apontar, tal como fez João Batista com André e o outro discípulo. Será o próprio Jesus a voltar-Se, a perguntar e a convidar para O seguir. Aquilo que recebemos desde o dia do nosso batismo obriga, contudo, a não esquecer. A fé que se transmite é também um momento que dá sentido à vida porque a ilumina com a palavra e o comportamento de Jesus. Conhecê-lo equivale a conhecer o seu Evangelho; desconhecer a Sagrada Escritura leva a cair na própria ignorância de Jesus. O que nos é pedido é que sejamos como as sentinelas da manhã: vigilantes, à espera e prontos a manifestar o anúncio da sua presença. Ainda assim, a saudade de Deus nunca poderá ser sufocada. É importante que, juntamente com a consciência da transmissão, se possa encontrar sempre novas formas que provoquem a atenção e a escuta daquilo que se está a transmitir. A via da beleza, de que a nossa história está cheia, pode ser uma dessas formas. A arte, a música, a literatura... tudo aquilo que foi suscitado pela fé e que produziu beleza pode ser ainda hoje instrumento eficaz de evangelização. Portanto, transmitir a fé reconduz ao coração do Evangelho, porque requer que se ponha o amor de novo no centro. Não um amor qualquer, que se contenta com um fim de semana de paixão. O que nós transmitimos é um amor que não se dá por vencido enquanto não tiver conquistado o irmão para o aproximar de Cristo, fonte inexaurível do amor que não morre.
Aquilo de que precisamos neste momento é da presença de homens e mulheres que, através do testemunho da sua fé, tornem Deus visível e palpável. A Igreja precisa de homens e mulheres que tenham o olhar fixo em Deus, aprendendo com Ele a verdadeira humanidade. O mundo precisa de homens e mulheres com uma inteligência iluminada pelo mistério de Deus e a quem Deus abre o coração, de modo que o seu intelecto possa falar ao intelecto dos outros e o seu coração possa abrir o coração dos outros. Somente através de homens e mulheres que são tocados por Deus, esse mesmo Deus poderá regressar ao meio dos homens. A transmissão da fé parte, portanto, daqui, ou seja, da credibilidade do nosso viver enquanto crentes e da nossa convicção de que a graça trabalha e transforma até ao ponto de converter o coração. O mundo de hoje tem uma profunda necessidade de amor, porque, infelizmente, conhece cada vez mais os seus fracassos. Olhar para o futuro com a certeza da esperança verdadeira é o que nos consente que não fiquemos nem numa espécie de saudosismo, que só olha para o passado, como se só ontem é que as coisas estavam no bom caminho, nem cair num horizonte de utopia, porque iludidos com hipóteses que não poderão ser correspondidas. A fé compromete no dia de hoje que estamos a viver; por isso, não lhe corresponder seria ignávia e medo; mas isso é algo que não é permitido a nós cristãos. Ficar fechados nas nossas igrejas poderia dar-nos alguma consolação e segurança, mas esvaziaria o Pentecostes de sentido. É tempo de escancarar as portas e voltar a anunciar a ressurreição de Cristo da qual todos nós somos testemunhas. De acordo com as palavras do Santo Bispo Inácio nos alvores do cristianismo: "Não basta ser chamados cristãos, é preciso sê-lo verdadeiramente" (Aos Magnésios, I,1). Se alguém pretende reconhecer os cristãos deve poder fazê-lo através do seu compromisso na fé, não pelas suas intenções.
Permitam-me que conclua com um conto antigo para testemunhar que, só mediante o contributo da complementaridade, podemos realizar uma eficaz obra de evangelização. Um poeta passou junto de uma obra e viu três trabalhadores atarefados; eram cortadores de pedras. Voltou-se para o primeiro e perguntou-lhe: "Que estás a fazer, amigo?". Aquele personagem, sem muita hesitação, respondeu-lhe: "Estou a cortar uma pedra". Caminhou mais um pouco e viu o segundo ao qual pôs a mesma pergunta; e este respondeu com surpresa: "Estou a participar na construção de uma coluna". Um pouco mais à frente, o peregrino viu o terceiro e também a este fez a mesma pergunta; a resposta cheia de entusiasmo foi: "Estou a construir uma catedral!" O sentido antigo não se altera devido à nova obra que que somos chamados a construir. São vários os trabalhadores chamados para a vinha do Senhor, para realizar a nova evangelização. Nas manhãs de ontem e de hoje, estive a falar para os sacerdotes e, neste fim de tarde, estou a falar para vós, leigos e leigas. A Igreja vive desta complementaridade, em que todos têm uma razão para exprimir o seu compromisso sem formas onde um prevalece sobre o outro. O que desejo e que gostaria de ouvir, é que à pergunta: "Que estás a fazer, amigo?", cada um pudesse responder: "Estou a construir uma catedral". Cada crente, que na fidelidade ao seu batismo, todos os dias se compromete, com trabalho e entusiasmo, testemunhando a sua própria fé, oferece o seu contributo original único para a construção desta grande catedral no mundo de hoje. É a Igreja do Senhor Jesus, seu corpo e sua esposa, povo constantemente a caminho, sem se cansar nunca, para anunciar a todos que Jesus ressuscitou, que voltou à vida, e que todos os que acreditaram n'Ele participaram no seu próprio mistério de amor, aurora de um dia que não conhece ocaso.
✠ Rino Fisichella