Domingo de Ramos 2022
DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR (C)
Catedral do Funchal
10 de abril 2022
"Salvou os outros, salve-se a si mesmo"
1. Os relatos da Paixão de Jesus (acabámos de escutar o relato segundo S. Lucas) são - entre outras características - marcados pelo contraste entre o modo como aqueles momentos são vividos por Jesus e o modo como os mesmos são vividos pelos outros intervenientes.
Os próprios discípulos, que tinham participado nesse momento único que foi a Última Ceia, passados apenas alguns instantes, envolveram-se numa discussão absolutamente estéril acerca de quem, entre eles, seria o maior!
Quanto aos outros personagens, a distância é ainda maior. A multidão saiu ao encontro do Senhor "com espadas e varapaus, como se fosse um salteador"; os guardas do Sumo-sacerdote troçavam de Jesus e maltratavam-no, divertindo-se à sua custa; Pilatos não hesitou em condenar um inocente, com o desdém de quem julga poder dispor da vida de qualquer ser humano... Herodes esperava assistir a um espectáculo de magia realizado por Jesus! Os chefes dos judeus mostraram-se completamente incapazes de reconhecer o Messias esperado, tomando-o como um charlatão vindo da Galileia, que era necessário condenar para poderem celebrar a Páscoa na tranquilidade...
2. No mínimo, devemos dizer que Jesus é tomado pouco a sério por todos. Mesmo (sobretudo) neste momento da sua Paixão: "Salvou os outros, salve-se a si mesmo, se é o Messias!".
Este parece ser o critério que a esmagadora maioria dos intervenientes tem para aferir a verdade de outro: apenas aquele que se coloca a si próprio em primeiro lugar e é capaz de se salvar, poderá depois pensar na salvação do próximo e propor-se a si como "salvador"! Nisso, devemos reconhecer que o critério, dois mil anos depois, não mudou. Continuamos a pensar que só aquele que, egoísticamente, for capaz de pensar primeiro em si mesmo, pode ter alguma credibilidade para salvar os outros! Como é grande o contraste entre este critério tão comum (e tão nosso!) e a atitude de Jesus!
Damo-nos conta disso quando escutamos a IIª Leitura, o célebre hino da Carta aos Filipenses (Filp 2,6-11). Cristo Jesus, de condição divina (quer dizer: Deus, da mesma condição e substância do Pai), não reivindicou para si a condição de Deus e todas as regalias que ela lhe trazia. Pelo contrário: aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo (quer dizer: assumindo a nossa condição, a nossa natureza humana). Tornou-se semelhante aos homens, fez-se nosso semelhante, na aparência exterior e no seu próprio ser interior.
E, não contente, foi ainda mais longe: obedeceu ao Pai até à morte. Esta era a missão que o Pai lhe tinha confiado. Não se tratou, portanto, de um qualquer divertimento - do prazer de um deus que desejasse passar uns dias experimentando como é viver como humano... Não: este abaixamento, o esquecimento de si é feito como "obediência". É, portanto, uma verdadeira missão recebida do Pai. A missão de Jesus, que o Pai lhe confiou, é esta de se conformar até ao fim, até ao extremo, com a nossa condição humana - condição de servo, condição mortal. Enviado para morrer, para se esquecer de si e salvar os outros!
Por isso, não bastou a Jesus fazer-se homem. Para cumprir a sua missão até ao fim, teria que experimentar o momento mais baixo, a aniquilação maior do nosso viver: teria que sofrer a morte. E não uma morte qualquer: a morte de cruz - aquele modo de morrer reservado como pena máxima para os que eram olhados como maiores criminosos, mais indignos dos seres humanos.
Nada, verdadeiramente nada do que é humano, ficou sem ter sido assumido por Deus! Deus viveu o mais baixo da condição humana. A cruz, a morte, a destruição - tudo isso foi vivido por Jesus.
A sua obediência à missão do Pai foi total, completa, perfeita. Jesus perdeu tudo: perdeu a sua condição divina e perdeu a sua condição humana; nada guardou para si, nem uma réstia de dignidade! Não o fez por masoquismo, por encontrar qualquer prazer no sofrimento, mas para, esquecendo-se de si, se identificar com o nada vivido, experimentado por tantos seres humanos, ao longo da história e mesmo hoje. E fê-lo para nos dar a sua vida, a vida de Deus. Fê-lo para nos salvar a nós, a cada um de nós. Fê-lo porque nos ama!
A salvação consiste precisamente nisso: Deus vive a nossa morte - a de todos os dias e aquela final, definitiva, que aniquila a nossa carne - para nos oferecer, em troca, a sua vida, a vida eterna, a vida verdadeiramente feliz. E sabemos que não é miragem, que não é sonho ou imaginação: vemos Jesus crucificado - Deus que, de braços abertos, morre apenas por um único motivo: o seu amor por todos e por cada um de nós.
"Por isso - continua o hino -, Deus o 'sobre-exaltou' e lhe deu o nome que está acima de todos os nomes": é a ressurreição de Jesus e a nossa ressurreição.
3. Hoje, Jesus continua a ser levado pouco a sério. Continua a ser levado pouco a sério por nós, que queremos ser seus discípulos e que, tantas vezes, nos perdemos em discussões acerca de quem é o maior, incapazes de O acompanhar, deixando-nos invadir pelo sono do nosso modo de viver.
Continua a ser olhado como insignificante pela multidão: olham-no como se fosse um homem bom, perdido no tempo de um mundo distante - como apenas mais um entre muitos: não foi capaz de se salvar a si mesmo, e não deve, por isso, ser capaz de resolver os nossos problemas...
Ao iniciarmos a Semana Santa, a "Semana Maior", olhemos para este Deus que nos ama. Contemplemos a cruz, que longe de ser sinal de derrota e de morte, é antes sinal de vida gloriosa e que, por isso, nos é apresentada como caminho de vida.
Tomemos Jesus a sério. Peçamos ao Senhor que nos dê a graça de fazermos nossa a sua cruz. De a vivermos no nosso quotidiano. E de, como Ele, nos esquecermos de nós, para O ajudarmos na salvação de todos.
+ Nuno, Bispo do Funchal