Homilia Encerramento dos 150 anos da conversão da Irmã Wilson

16-01-2024

II DOMINGO DO TEMPO COMUM (B)

Encerramento dos 150 anos da conversão da Irmã Wilson

140 anos da fundação da Congregação das FNSV

Catedral do Funchal, 14 de janeiro de 2024

1. "Samuel, Samuel"… "Vinde ver…": a voz do Senhor faz-se escutar, ontem como hoje, dirigindo-se a homens e mulheres, com histórias concretas e reais, para missões concretas e reais.

A iniciativa é sempre de Deus. É Ele quem chama, consagra, envia. Chama aquele que quer. Trata-se dum desígnio divino sobre uma pessoa concreta e real, mas sempre integrado no desígnio universal de amor e redenção que é a história do mundo, a história da salvação. Um desígnio que não pode ser detido a não ser pela liberdade humana. Um desígnio que, por se integrar naquele outro que diz respeito ao mundo inteiro, se encontra já proferido antes da criação — o que permite ao Profeta ou ao Apóstolo falar de um desígnio desde o seio materno (e por isso, não raras vezes, a sua concepção é, também ela, envolvida em condições extraordinárias).

Deus chama. Chama pessoas concretas e reais. Não chama super-homens; não chama gente ideal; não convida gente sem passado, fora do presente ou sem futuro: chamou Samuel, aquele filho de Elcana e de Ana, a mulher estéril que "derramou o seu coração" na presença do Senhor (1Sam 1,20-28); e chamou aqueles dois homens, João e André, discípulos de João Baptista, que escutaram de Jesus o convite ("Vinde ver") — convite que modificou para sempre as suas vidas. Chama de modos muito diferentes: uma voz que se escuta, um encontro que tem lugar; um acontecimento que interpela…

Deus chama para uma missão. Chama porque existe uma humanidade a salvar: porque existem corações de pedra a transformar em corações de carne; egoístas que precisam de perceber o valor do outro; auto-suficientes que necessitam de viver a centralidade de Deus. Chama porque existem cegos que necessitam da luz; porque existe um povo concreto a alimentar com a palavra de Deus e a conduzir para o Céu.

Deus chama em vista de Cristo. O fim da vocação — qualquer que ela seja — é sempre ajudar a que Cristo dê forma à vida: que Ele dê forma aos pensamentos e aos sentimentos, dos mais secretos àqueles que são publicamente partilhados; que dê forma ao modo de viver das famílias, dos povos, das civilizações.

Deus chama, e nós necessitamos de perceber o seu convite como convite divino, que exige daquele a quem é dirigido uma resposta inadiável e irrecusável. Por isso, hoje mais do que nunca, a humanidade necessita de quem assuma o papel de Heli ou de João Baptista: homens e mulheres que ajudem a perceber se se trata de um sonho ou do fruto da imaginação — ou se, de verdade, é a voz de Deus que acorda, faz erguer, interpela, convida. A humanidade necessita de outros tantos João Baptista, capazes de dizer: "Não sou eu… eis o Cordeiro de Deus". Homens e mulheres que ensinem a responder, que ajudem a perceber como a vida de alguém (quem quer que seja) apenas se resolve de verdade, na resposta total, no seguimento do Senhor, na disponibilidade para estar com Ele, em sua casa (quer dizer: na Igreja), para depois regressar com a capacidade de anunciar: "Encontrámos o Messias".

2. Ao celebrarmos os 150 anos da conversão de Mary Jane Wilson e os 140 anos da fundação da Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, mais não estamos a fazer que a celebrar a vocação de uma mulher que, disponível à voz do Senhor, foi, por isso, capaz de crescer na sua disponibilidade missionária.

Com efeito, ao olharmos a vida da Irmã Wilson notamos como foi crescendo na intimidade, na procura e na escuta da vontade divina, e como desta procura foi capaz de ir, cada vez mais, retirando todas as consequências.

A vida de uma pequena burguesa de Inglaterra foi-se transformando: de uma rapariga exuberante, honesta, estudiosa, surgiu a paixão pela Verdade e logo a necessária conversão, mesmo à custa da perda de conforto financeiro.

Foi esta conversão (em tudo semelhante àquele "Onde moras? Dos primeiros discípulos, como escutámos no evangelho") foi esta conversão que se concretizou naquela noite de 29 para 30 de abril de 1873, numa luta em que Deus saiu vitorioso. As dúvidas sobre a presença real de Cristo na Eucaristia transformaram-se em certeza crente, dando.-lhe a possibilidade de, com todo o coração, escrever: "Recebi o dom da fé!".

Mas eis que aquela questão colocada ao Senhor e respondida com palavras semelhantes ao "Vinde ver" evangélico, se irá desenvolver e aprofundar cada vez mais. Logo depois da conversão, foram as peregrinações e a certeza acolhida no seu final: queria ajudar os pobres e os doentes do mundo, tornando-se enfermeira.

Chegada à Madeira em 1881, logo começou a notar a falta de educação cristã no seu povo. Mas como ensinar o catecismo a crianças e a adultos sem alimento e doentes? E como não congregar à sua volta outras boas vontades, que deste modo se viam multiplicadas e mais eficazes? E como não perceber o dedo de Deus nesta realidade que ia crescendo, bem como o convite a uma vida espiritual sempre mais intensa?

A criação de uma comunidade religiosa foi pois a consequência daquele primeiro chamamento e o fruto duma necessidade para que a actividade iniciada continuasse; mas foi, também e sobretudo, o fruto de um continuado apelo divino. A 15 de Janeiro de 1884 (passam amanhã 140 anos), Mary Jane Wilson e outras companheiras deram início às "Irmãs de São Francisco do Funchal" e ao seu noviciado.

"Todos os nossos trabalhos, Deus os quis; a Sua Vontade era o meu único desejo": dirá a irmã Wilson, já no final da vida, assim resumindo toda a obra imensa realizada na nossa Ilha.

A "Menina do manto negro e farmácia ambulante", como era inicialmente conhecida, tinha sido transformada, conduzida por uma caridade sem limites, pela frequência da Sagrada Escritura e por um contínuo exame de consciência.

São ainda palavras da Venerável Irmã Wilson: "Devemos esforçar-nos para viver a nossa existência de um modo sobrenatural; aqui reside a diferença entre a vida religiosa e a secular; a confiança que produz o nosso sucesso no mundo é a fé em Deus. […] Devemos ser como rochas sólidas; deste modo, Deus edificará o nosso trabalho. Se não fizemos o trabalho como Deus deseja que seja feito, então será destruído na primeira pequena tempestade. Se formos pedras frágeis, não podemos carregar o peso dos muitos obstáculos da vida" (T. DUNPHY, 39-40).

Hoje, damos graças a Deus pela intensa vida sobrenatural da Irmã Maria de São Francisco Wilson; e damos também graças a Deus por toda a obra realizada entre nós, que modificou o rosto humano da nossa Ilha. Pedimos para a Congregação das Irmãs Vitorianas, que ela fundou, a fidelidade ao seu carisma e a disponibilidade constante para responder aos apelos do Senhor, que sempre nos chama a segui-Lo.

E para todos nós pedimos, igualmente, a graça de O escutarmos, disponíveis, para aprender a vontade divina — a concretização na vida de cada um daquela atitude que Heli ensinou a Samuel: "Falai, Senhor, que o vosso servo escuta".

+ Nuno, Bispo do Funchal