Homilia Centenário Casa de Saúde São João de Deus

10-08-2024
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

CENTENÁRIO DA CASA DE SAÚDE SÃO JOÃO DE DEUS

Funchal, 9 de agosto de 2024

"Hei-de falar-lhe ao coração"

1. Duas grandes figuras iluminam esta nossa celebração: a primeira é a figura gigantesca de uma mulher, Santa Edith Stein (Teresa Benedita da Cruz), nascida em Breslávia em 1891, em jovem, filósofa e pensadora judaica e, na sua maturidade, teóloga cristã e religiosa carmelita. Sofreu o martírio no Campo de Concentração de Auschwitz, em 1942. Hoje celebramos a sua Festa. Juntamente com as santas Catarina de Sena e Brígida da Suécia, é uma das padroeiras da Europa, a par das figuras dos santos Bento, Cirilo e Metódio.

Com o seu martírio, Edith Stein continua a testemunhar o quanto necessitamos de procurar a Verdade — ela que foi uma incansável buscadora da Verdade. E como necessitamos de nos dispor a encontrá-la e a deixarmo-nos moldar e converter por ela, porque apenas a Verdade nos oferece o autêntico sentido da existência. E continua ainda a mostrar-nos o quanto necessitamos de Deus, e como é importante que esta nossa velha Europa não esqueça as suas raízes crentes, em particular as suas raízes cristãs.

Mas, hoje, não podemos também esquecer a figura de um outro mártir. Com efeito, há 100 anos atrás, neste mesmo lugar em que nos encontramos, o Beato Juan Jesus Andradas presidia à Eucaristia de inauguração desta Casa de Saúde de S. João de Deus. Fazia-o como Superior Provincial da Ordem Hospitaleira que, nessa ocasião, começava o seu precioso trabalho por terras madeirenses.

Também ele, em 1936 (poucos anos antes de Santa Edith Stein), juntamente com outros sacerdotes e leigos, foi morto por ódio à fé nos massacres de Paracuellos, perpetrados pelos exércitos republicanos que ocupavam Madrid no meio da Guerra Civil.

Com o seu sangue derramado, mostrando como Deus e a nossa relação com Ele são mais importantes que a própria vida, o Padre Andradas continua a interrogar-nos sobre o lugar que Deus tem na vida de cada um e de toda a nossa sociedade, e qual a solicitude que oferecemos ao irmão que sofre, caído à beira da estrada.

2. "Hei-de conduzir Israel ao deserto e falar-lhe ao coração. Ali corresponderá como nos dias da sua juventude" (Os 2,16b.17b). O Profeta não hesita em usar a linguagem do enamoramento — mesmo da paixão — para mostrar o modo como Deus pretende fazer regressar o povo de Israel ao seu amor.

É certo: o povo tinha-se esquecido do Deus que o salvara, preferindo o culto de outros deuses — culto mais fácil, sem envolver a totalidade da existência, mas prestado a deuses simplesmente inexistentes.

Quando, séculos antes, Deus escolhera Israel, estava bem consciente da sua fragilidade e inconstância: tinha-o escolhido, não por ser o maior ou o mais sábio, mas porque o próprio Deus se deixara apaixonar por aquele povo. Apesar da infidelidade de Israel, Deus permanecerá sempre fiel à Aliança (cf. Dt 7,7): poderia Ele desistir deste amor? Falará, pois, uma vez mais, ao coração do Povo, e tratará de o seduzir como nos dias da juventude.

É a consciência deste enamoramento divino, deste amor que fala ao coração; a consciência destas tentativas fieis de Deus para nos conquistar (a nós seres humanos, pecadores, frágeis, inconstantes); a consciência deste "louco amor divino" por cada um e por todos, que faz surgir no ser humano a necessidade de lhe corresponder com uma entrega total de amor. Apenas isso justifica a atitude dos mártires que derramam o seu sangue e não se dobram perante as ameaças e torturas dos poderosos (pouco importa se no início do cristianismo, no século passado ou no momento actual). Com esse gesto de amor, os mártires gritam ao mundo a verdade concreta e evidente — suprema! — do amor de Deus. E nesse gesto total e público ensinam-nos o que é ser cristão.

3. Esta verdade concreta da supremacia do amor divino por cada um de nós e por todos (em particular pelos pobres e marginalizados), encontramo-la na vida de todos os santos. É ela (a "loucura do amor") que encontramos também, dum modo muito concreto, na vida de São João de Deus, sob cuja invocação se encontra esta Casa. É ela que constitui o seu alicerce desde há 100 anos.

É certo que, quando chegaram à Madeira, Deus não conduziu os primeiros Irmãos da Ordem Hospitaleira ao deserto. Conduziu-os ao Trapiche, uma montanha verdejante, onde outrora existia um engenho de açúcar, não sem que antes fossem ultrapassados vários obstáculos: para alguns madeirenses influentes desse tempo, era preferível ter os marginalizados abandonados à sua sorte que acolher mais uma presença de Deus!… E o caminho (quase podíamos dizer: a peregrinação) não foi realizada por "terreno chão", mas entre pedras e estreitos percursos. Nem carregavam eles bens a serem usados para seu próprio conforto: antes, como o Bom Samaritano, levavam aos ombros os primeiros doentes, incapazes alguns de percorrer por si o caminho.

Como quer que seja, aqui, neste casa, ao longo destes 100 anos, Deus tem-nos falado ao coração. Tem, certamente, falado ao coração de tantos Irmãos da Ordem Hospitaleira que aqui têm prestado serviço, oferecendo a sua vida no cuidado dos mais abandonados e marginalizados. Tem falado ao coração de tantos doentes que aqui encontram os cuidados de que necessitam. Mas tem, sobretudo, falado ao coração de toda a nossa Ilha, cuja população sabe que nesta casa pode encontrar a cura ou simplesmente o acompanhamento necessário para tantas doenças e sofrimentos do corpo ou da alma.

Esta casa é um verdadeiro testemunho de fé. Na eficiência dos cuidados técnicos de saúde que aqui são prestados, mas também (sobretudo!) na humanidade dispensada aos seus pacientes. Trata-se daquele mesmo testemunho que, partindo do Senhor Jesus, passando pelos Apóstolos, mártires e santos dos primeiros séculos; atravessando a vida de São João de Deus e dos outros santos da Ordem Hospitaleira (João Grande, Bento Meni, Ricardo Pampuri e Juan Jesus Andradas), nos chega hoje, proclamando a loucura do amor divino vivido no quotidiano, no cuidado daqueles que a nossa sociedade mais marginaliza. Por esse testemunho, estamos gratos a Deus. Pedimos ao Senhor que nos ajude a acolhê-lo, a agradecê-lo e a deixarmo-nos, também nós, moldar por ele.

+ Nuno, Bispo do Funchal