Homilia Centenário do Nascimento D. Francisco Santana

11-10-2024
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

CENTENÁRIO NASCIMENTO D. FRANCISCO SANTANA

Sexta-feira da XXVII SEMANA TC

Sé, 11 de outubro de 2024

Com Jesus

1. "Quem não está comigo, está contra Mim; e quem não junta comigo, dispersa". O mundo contemporâneo prefere, claramente, aquela outra formulação, igualmente proferida por Jesus: "Quem não está contra nós, é por nós" (Mc 9,40). No entanto, se virmos com alguma atenção, ambas são a proclamação da realidade central de Jesus para todo o ser humano. Ou, se quisermos, qualquer das duas afirmações confluem na afirmação da proximidade do Reino ("Se Eu expulso os demónios pelo dedo de Deus, então quer dizer que o Reino de Deus chegou até vós").

Apenas Jesus é o salvador porque apenas Ele é o Deus connosco. Ele é "o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14,6). Ou, dito ainda por outras palavras: "Ninguém vai ao Pai senão por Mim". Outros poderão apresentar-se como "homens de Deus", reivindicar inspirações ou, até, o dom da profecia. Mas apenas o Senhor Jesus se apresenta e reivindica coerentemente com esta autoridade divina do Filho, do Salvador.

A evangelização, apresentada pelo Concílio Vaticano II e por todos os Papas sucessivos como o grande objectivo da acção da Igreja, consiste pois em tornar claro, consciente, existência total, esta centralidade de Jesus na vida de cada ser humano, de toda a sociedade e de todas as sociedades humanas — transformando-as a partir do interior, mudando as suas estruturas culturais, tornando-as mais humanas e mais divinas. Consiste em anunciar a proximidade do Reino.

Esta necessidade de evangelização nada tem em comum com a imposição, com a estreiteza no que toca ao diálogo civilizacional ou à afirmação teológica, porque a nossa relação com Deus é sempre (e não pode ser de outra forma) baseada na aceitação livre daquele que vem, desarmado, ao nosso encontro para nos salvar.

É a liberdade da fé, que escutávamos ser defendida por S. Paulo na Carta aos Gálatas — liberdade que há-de respeitar a consciência do outro, mas que não pode deixar de propor (sempre propor) Jesus como Aquele em quem o ser humano encontra a resolução das suas dificuldades, das suas angústias, da sua existência em todas as dimensões. "Por meio de Jesus Cristo, a bênção de Abraão estendeu-se aos gentios, e nós recebemos, pela fé, o Espírito prometido" (Gal 3,14).

Acolhendo Jesus Cristo (o Evangelho) com toda a disponibilidade, o ser humano — qualquer que ele seja, de qualquer proveniência ou com qualquer passado —, encontra um centro a partir do qual edificar harmoniosa e plenamente a existência (pessoal ou social). Trata-se de perceber que, assumindo esse centro (e apenas desse modo), tudo passa a adquirir o sentido pleno, tudo passa a receber verdadeira harmonia e a possibilitar horizontes maiores, infinitos, horizontes de vida.

Só em Jesus, e não noutras realidades (Karl Marx propôs a economia; S. Freud o impulso sexual; F. Nietzsche a afirmação do super-Homem — para referir apenas algumas das propostas que ainda hoje governam o mundo), só em Jesus a vida humana verdadeiramente se encontra e constrói. Só Ele permite ultrapassar a indiferença ou o relativismo contemporâneos. É por isso que, hoje como antes, urge torná-lo próximo de todos e de todas as instituições e realidades humanas.

2. A nossa Diocese celebra hoje os 100 anos do nascimento do Senhor Dom Francisco Santana. Não tive a graça de o conhecer: apenas numa ou noutra ocasião trocámos breves saudações e cumprimentos. Mas, desde que assumi o ministério de Bispo do Funchal, devo reconhecer que muitos foram os madeirenses que a ele se referiram com saudade e com palavras de reconhecimento pelo seu trabalho, pela sua humildade e proximidade, pelo incremento que ele proporcionou na sua vida cristã. Isso significa o quanto foi profundo e fecundo o seu trabalho apostólico — dos contactos humanos de proximidade à presidência de tantas e multitudinárias manifestações de fé; da amizade informal à intervenção pública na vida madeirense.

Creio que podemos resumir o trabalho apostólico do Senhor Dom Francisco Santana na nossa diocese em dois vectores.

O primeiro, aquele da evangelização, seguindo as directrizes do Concílio Vaticano II. Dizia o Senhor Dom Francisco à sua chegada ao Funchal: "A todos vós afirmo a minha decisão de ser o vosso Bispo, sem qualquer medo do presente ou do futuro, sem outros compromissos que não sejam os de Cristo, sem ostentação ou abuso de autoridade, para reunir todos os de boa vontade e sermos o fermento de santidade, de justiça e de amor na reconstrução do mundo de hoje. Com os olhos postos no Céu, saberemos ocupar dignamente o lugar que nos compete, dando testemunho de Cristo em todas as circunstâncias" (JM, 6.3.82, p. 7). E, noutra ocasião: "A Igreja foi feita para estar no mundo e deve actuar em qualquer situação, não se acomodando nem às direitas nem às esquerdas, nem a qualquer orientação de ordem política, fazendo o jogo ambíguo do sim e do não".

O segundo vector da sua actividade episcopal podemos sintetizá-lo do seguinte modo: a defesa da identidade e liberdade da Madeira. No período difícil por que Portugal passou depois da "revolução dos cravos", D. Francisco Santana, mesmo vindo de Lisboa, foi capaz de interpretar a alma madeirense e de defender a sua identidade e os seus valores. Soube reconhecê-lo a população madeirense: basta olhar as fotografias da enorme multidão que participou nas suas exéquias. E ele próprio afirmava: "Eu conheço todo o nosso povo e particularmente os jovens, e sei bem que em nada são inferiores aos habitantes do continente, a não ser na dureza da vida a que têm sido condenados" (JM, 8.3.82, p. 4).

Certamente: o Senhor D. Francisco Santana foi um homem polémico em muitas das suas decisões e atitudes. Ele próprio reconheceu as suas limitações: "Embora me esforce, sei que não posso ser perfeito em tudo, e não tenho monopólio da verdade e o condão de tudo fazer bem. Seria então o super-homem, e super-homens não existem neste mundo. Só Cristo foi o homem perfeito. Sei que Ele, Cristo, tem tremendas exigências sobre mim, assim como sobre todos os que O seguem" (JM, 8.3.82, p. 4).

Damos hoje graças a Deus pelo pastor dedicado e interveniente que esteve à frente da nossa Diocese de 1974 a 1982. Pedimos que lhe sejam perdoadas as faltas que tiver cometido, e que o Senhor nosso Deus, Pai misericordioso, o acolha no descanso eterno.

+ Nuno, Bispo do Funchal