Homilia de Sexta-Feira Santa

SEXTA-FEIRA SANTA
Celebração a Paixão do Senhor
Sé, 18 de abril de 2025
"Acreditar e esperar no Crucificado"
1. O peregrino que vá a Jerusalém pode, ainda hoje, refazer o percurso de Jesus nestes dias derradeiros. São acontecimentos bem descritos e documentados, situados num lugar e num tempo precisos. Contudo, ao escrever a narração do sucedido, S. João diz: "Aquele que viu é que dá testemunho e o seu testemunho é verdadeiro. Ele sabe que diz a verdade, para que também vós acrediteis. Assim aconteceu para se cumprir a Escritura".
"Para que também vós acrediteis". Que somos convidados a acreditar? Em acontecimentos históricos, não precisamos de acreditar: eles estão aí, desenrolam-se à vista de todos… Mas S. João, o "discípulo amado", não se limita a narrar os acontecimentos: afirma também que Jesus os tinha preanunciado, e entrelaça tudo com diversas referências à Sagrada Escritura, concluindo: "Assim se cumpria a Escritura".
Para a esmagadora maioria dos habitantes de Jerusalém, Jesus foi apenas um condenado por se fazer Filho de Deus; para os chefes judaicos, tratava-se de defender as prerrogativas que lhes conferiam alguma independência em relação a Roma; para os soldados era apenas mais um crucificado, entre tantos que Pilatos condenara; mesmo para a maioria dos discípulos de Jesus, o que naqueles dias sucedeu em Jerusalém constitui uma desilusão, uma derrota.
2. A pergunta choca, mas temos de a colocar: podemos nós, homens e mulheres do século XXI, acreditar em Alguém que foi crucificado? Podemos entregar-lhe o que pensamos, o que fazemos, o que somos? E, ainda mais: podemos acreditar no testemunho de João? Podemos acreditar no modo como ele lê para nós o significado dos acontecimentos, e fazê-lo nosso?
João, o discípulo amado (aquele que "viu e acreditou" quando foi confrontado com o túmulo vazio, e que, há pouco, nos convidava a essa mesma sua atitude de fé) foi capaz de ir além dos simples acontecimentos. Na redação do evangelho não lhe bastou o simples enumerar de factos. Em cada acontecimento da vida de Jesus, ele percebia o cumprimento das Escrituras, a realização do plano de Deus. Isso mesmo o reconheceu no final do seu evangelho: "Muitos outros sinais realizou Jesus diante dos seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida no seu nome" (Jo 20,30-31; cf. 21,24-25)
João escreveu o seu evangelho com um objectivo: "Para que acrediteis". Propõe-nos que, como ele, sejamos capazes de perceber que a cruz do Senhor, mais que patíbulo, é trono real; que, longe de ser derrota, é exaltação; que, longe de ser cedência à morte, é luta e vitória; é amor vivido e entregue, pelos seus e por todos, até ao fim.
Também Paulo — aquele fariseu observante que inicialmente perseguia os cristãos — depois de encontrado pelo Senhor no Caminho de Damasco e de ver toda a sua vida transformada, convertida, passou a olhar para a cruz de um outro modo. Deixou de a ver como mero e neutro acontecimento histórico; a cruz passou a ser a prova do amor que Deus tem por todos. Dizia ele aos cristãos de Corinto: "Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos procuram a sabedoria, nós proclamamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Mas para os que foram chamados, sejam eles judeus ou gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus; porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens" (1Cor 1,22-25).
Mas podemos nós, homens e mulheres do século XXI, acreditar, quer dizer: entregar toda a nossa vida a este Jesus morto na cruz?
S. João foi capaz de perceber que, na Cruz, é Deus que vive em primeira pessoa a morte humana para nos poder oferecer a sua vida, a Vida Eterna. E S. Paulo, noutro lugar, falando da vida cristã, afirmava: "Com Cristo estou crucificado. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. O que agora vivo na carne, vivo-o na fé no Filho de Deus, que me amou e a si próprio se entregou por mim" (Gal 2,19-20). Vivo na carne e vivo na fé!
Sim. O que nos torna cristãos é, precisamente reconhecermos Deus que, pregado na cruz, nos ama e nos salva. É reconhecermos no madeiro da cruz Aquele que hoje nos pode salvar.
3. E podemos esperar nele? Que podemos nós esperar de um morto na cruz? Ao viver a nossa morte na cruz, Deus rompe as cadeias com que a morte nos prendia; derruba o muro que nos impedia de ver mais além, de viver a eternidade. Se antes todas as esperanças humanas terminavam no abismo da morte, Aquele que por nós morreu na cruz estendeu, por entre esse abismo que nos separava de Deus, uma ponte que nos permite ver, viver, esperar a Vida Eterna.
"Ave, o Crux, spes unica" — assim começa um antigo hino cristão: "Cruz do Senhor és única esperança/ no tempo da tristeza e da paixão./ Aumenta nos cristãos a luz da fé,/ sê para os homens o sinal da paz". E Santa Edith Stein convidava: "Os braços do Crucificado estão estendidos para te atrair ao seu coração. Ele quer a tua vida para te dar a sua"(Geistliche Texte II. Gesamtausgabe, Band 20).
Sim, irmãos, podemos esperar na Cruz do Senhor. Aliás: apenas nela podemos esperar. Porque só podemos esperar no Amor. E, na Cruz de Jesus, Deus mostra como nos ama até ao fim, até ao mais íntimo do seu e do nosso coração.
+ Nuno, Bispo do Funchal