Homilia Dia da Região

01-07-2024
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

SEGUNDA FEIRA XIII SEMANA TEMPO COMUM

Dia da Região

Sé, 1 de Julho de 2024

Esta celebração, no dia do "achamento" da nossa Ilha da Madeira, convida-nos a tomar consciência do que somos, das forças que necessitamos para construir o futuro, e do lugar que Deus há-de ter na nossa vida pessoal e comunitária.

1. O que somos

Quem somos? Quando os navios de Zarco chegaram à Ilha, não encontraram ninguém. As maravilhas naturais pareciam estar ali, à espera que alguém tomasse conta delas: à espera de alguém que, vindo de muitos lugares de Portugal e de outras paragens europeias, desbravasse a floresta; que tomasse posse dos muitos recursos naturais; que, com uma tenacidade incrível, abrisse caminho "do mar à montanha e do vale à serra"; que transformasse a rocha dura da natureza e do coração humano em terrenos férteis, capazes de produzir pão e de crescer em humanidade.

Mas não apenas no passado. A tenacidade dos nossos pais e avós continua bem presente nos madeirenses de hoje, como o demonstram os túneis e as vias de comunicação, as edificações urbanas e hoteleiras, e as outras iniciativas, humanas e espirituais, que caracterizam o nosso quotidiano.

E a vitória, permitida pelas mãos calosas dos madeirenses, deu também lugar ao desejo de partir para outras terras, conquistando novos mundos, levando o ser madeirense a todas as paragens do globo.

2. Que forças necessitamos?

Quando, há 600 anos, Zarco e os seus chegaram e começaram a habitar esta Ilha, necessitaram de braços fortes, capazes de derrubar a floresta, de dominar a cana de açúcar, de rasgar engenhosamente os percursos das levadas. E necessitaram da resiliência de um povo, capaz de não desistir perante as dificuldades da orografia, do clima, e do próprio viver em comum.

Hoje, que forças necessitamos? O futuro da nossa Região continua, certamente, a necessitar da generosidade dedicada e forte de uma boa parte do seu povo. Continua a necessitar do engenho sábio de quem perfura as montanhas e abre traçados seguros e rápidos, permitindo melhores acessos e comunicações. Continua a necessitar de empreendedores que invistam em projectos que a todos assegurem trabalho e a vida digna. Continua a necessitar do saber que nos permite comunicar instantaneamente com todas as partes do mundo.

Mas hoje necessitamos, para além disso, das forças interiores que nos permitem realizar o muito de que somos capazes, e (sobretudo) aquela capacidade de comunhão que faz de todos os madeirenses um povo que, unido, desafia e enfrenta as dificuldades. Necessitamos, mais ainda que em tempos passados, das forças que surgem quando todos cuidam de todos, conscientes de que, quando o bem comum é colocado em primeiro lugar, também o proveito individual é maior.

Necessitamos das forças que permitam não apenas acolher com simpatia aqueles que nos visitam como turistas, como também que nos ajudem a oferecer-lhes o testemunho de uma vida humana e cristã cheia de sentido. Necessitamos das forças que façam da nossa emigração mais que um recurso de quem não encontra na Ilha a solução dos seus problemas ou nela se sente prisioneiro, o fruto de quem quer partilhar com outros a vida que aqui vivemos em abundância.

E necessitamos das forças que permitam resolver os muitos problemas que ainda nos assolam — problemas que são nossos e bem mais difíceis de derrubar que as árvores gigantescas encontradas por Zarco: a crise da habitação, o rendimento do trabalho que permita uma vida digna, e (de um modo particular) a força que ajude a resolver o problema do consumo de drogas.

Permito-me, a este respeito, citar palavras recentes do Papa Francisco: "A droga esmaga a dignidade humana. Uma redução da dependência das drogas não se obtém liberalizando o seu consumo — isso é uma fantasia —, como foi proposto e praticado em alguns países. Se liberalizamos, consome-se mais. Conheço (dizia o Papa) tantas histórias trágicas de toxicodependentes e das suas famílias, e estou convencido de que é um dever moral pôr fim à produção e ao tráfico destas substâncias perigosas (Audiência Geral, 26 de Junho).

3. A presença de Deus

Deus esteve sempre presente na vida dos madeirenses. Não há nenhum momento em que Ele e o seu louvor (plasmado nas tantas festas que povoam a nossa Ilha) não tenham acompanhado e partilhado a vida de cada um e de todos, ao longo destes 600 anos. Pelo contrário: a fé sempre marcou e marca os ritmos do nosso viver.

Como escutávamos no evangelho, nunca nos bastou o voluntarismo como o daquele doutor da Lei, que se ofereceu para acompanhar o Senhor e — porventura — ensinar-lhe como se deveria comportar ou o que deveria dizer. E (muito menos) quisemos colocar condições para seguir Jesus ("deixa-me ir primeiro sepultar meu pai"). Seguir o Senhor — bem o compreendeu desde sempre o povo madeirense — é, antes de mais, a atitude de quem acolhe, com toda a disponibilidade, Deus que passa por nós. É dispor-se a realizar plenamente a Sua vontade.

A fé, a disponibilidade para seguir o Senhor em cada instante, deu aos madeirenses do passado a força interior para resistir às intempéries, aluviões, sofrimentos, escravidões. A fé (e o horizonte que apenas ela abre diante de cada um e de todos) foi o pano de fundo, o fio que conduziu e teceu o ser madeirense, certo do futuro que Deus lhe prepara.

Deus, sempre e em tudo, acima de tudo. Deus no viver e no morrer; Deus que consola e permite viver de cabeça erguida a dureza do quotidiano; Deus que dá sentido às lutas, aos trabalhos e alegrias; Deus que permite olhar mais longe — não apenas para as novas paragens como, sobretudo, para aquele horizonte de vida eterna, único a permitir viver plenamente o hoje como realidade cheia de sentido.

Engana-se quem pretenda afastar Deus do quotidiano madeirense. Ou quem julgue encontrar noutra realidade a força e o sustento que apenas a fé cristã é capaz de oferecer. Do esquecimento de Deus e das suas consequências trágicas nos falava a Iª leitura. Julgar que Deus se limita a fazer maravilhas por nós e não vê ou esquece a opressão do pobre e do humilde: eis um engano em que facilmente podemos cair. O Profeta Amós alertava para as suas inevitáveis consequências: "A fuga não será possível para o mais ágil, nem o mais forte poderá recorrer à sua força, nem o valente terá a vida salva. O arqueiro não resistirá, nem o corredor veloz escapará, nem o cavaleiro salvará a vida. O mais valente dos heróis fugirá nu naquele dia".

Celebramos hoje o modo de ser madeirense. Não nos basta, no entanto, olhar para trás, para a tradição, cheios de orgulho do que fomos, e repetir gestos que hoje pouco significam. Importa, sobretudo, olhar o presente e o futuro, animados pela fé, ancorados na esperança, disponíveis para a caridade, colocando o bem comum antes e acima de tudo. E, em tudo, Deus. Assim Ele nos encontre disponíveis para as maravilhas que Ele sempre quer realizar em nós e em todos, na nossa Região.


+ Nuno, Bispo do Funchal