Homilia Dia do Advogado

17-05-2024
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

DIA DO ADVOGADO

Sexta-feira da VII Semana Pascal

Sé, 17 de Maio de 2024

"Respondi-lhes que não era costume dos romanos conceder a entrega de qualquer homem, antes de o réu ter na sua frente os acusadores e poder defender-se da acusação" (Act 25,16).

1. Paulo, o fariseu nascido em Tarso, na Cilícia (actual Turquia), era cidadão romano. Não sabemos a origem exacta de tal condição — se por herança paterna, por nascimento em cidade romana, ou por qualquer outro motivo que nos escapa. Mas sabemos que era cidadão romano desde o nascimento. E sabemos que essa condição lhe tinha já evitado que recebesse do Tribuno Claudio Lísias o castigo da flagelação (Act 22,25), e que tinha ainda permitido a sua condução à presença do Governador Marco Félix, evitando a conspiração judaica contra a sua vida. Fora ainda a sua condição romana que levara o Governador a adiar por dois anos o juízo definitivo do Apóstolo, e a conversar com ele com frequência (Act 24,27).

Durante o ano 60, Félix, acusado de corrupção (de que vemos indícios também em Act 24,26) e de severidade excessiva, foi substituído no governo da Judeia por Pórtico Festo, deixando no entretanto o Apóstolo Paulo nos calabouços de Cesareia (cf. Guerra Judaica VI, 5,3).

Chegado o novo Governador, o Sinédrio de Jerusalém não esquece, antes renova as acusações contra Paulo. Mas este, mesmo percebendo que poderia, com alguma facilidade, vencer a causa, requer que ela seja decidida em Roma pelo Imperador. Fá-lo porque tinha em mente uma viagem que seria bem mais difícil empreender de outro modo: Paulo queria ir anunciar o Evangelho em Roma, segundo a missão anteriormente recebida do Senhor Jesus: "Assim como deste testemunho de Mim em Jerusalém, deverás dar testemunho também em Roma" (Act 23,11).

É durante este intervalo que Herodes Agripa visita Festo, juntamente com Berenice, sua irmã. Festo não sabe o que escrever ao Imperador acerca do estranho caso de Paulo (tudo lhe parece uma questão religiosa, para ele sem sentido), e pede ajuda a Agripa.

O texto que acabámos de escutar como Iª leitura é precisamente essa narração. Nela, Festo conta o que disse ao Sinédrio: "Respondi-lhes que não era costume dos romanos conceder a entrega de qualquer homem, antes de o réu ter na sua frente os acusadores e poder defender-se da acusação" (Act 25,16).

2. O direito romano não tem origem divina. São um conjunto de normas que regulam a vida da sociedade romana, fruto de diversas fontes, mas que, desde esse tempo até aos nossos dias, constituem a base de uma boa parte do direito ocidental.

Sabemos como, no tempo do Império, o Direito era apenas aplicado aos cidadãos romanos (como era o caso de Paulo) — escravos e estrangeiros eram tomados como inferiores. Foi o cristianismo que, depois, alargou os princípios romanos a todos, e reconheceu a sua universalidade.

Não podemos, por isso, deixar de realizar duas observações importantes — tanto mais que esta nossa celebração tem lugar por ocasião do "Dia do Advogado".

Em primeiro lugar, reafirmemos o Direito como realidade essencial na convivência das sociedades humanas. Com efeito, é sua função não apenas regular a convivência humana nos seus mais diferentes aspectos como, sobretudo, garantir os direitos do mais fraco e, assim, que a sua dignidade como ser humano é respeitada.

Claro que o Direito é, depois, vertido em leis pelo poder legislativo — leis que podem ser mais ou menos justas, ou mais ou menos conformes aos princípios naturais e racionais que as devem inspirar. Por isso mesmo, a lei injusta (aquela que não é inspirada pelo Direito) não obriga. Antes deve conduzir à objecção de consciência.

Mas isso significa que não podemos passar sem o Direito e sem o seu exercício. No caso de Paulo, as autoridades de Jerusalém desejavam uma rápida condenação do Apóstolo acusado — daquele que consideravam traidor (um fariseu que, há não muito tempo, se tinha distinguido pela perseguição aos cristãos, e que agora defendia a fé). Acusaram-no de "profanação do Templo". O caso, segundo eles, já durava há demasiado tempo. Era essencial uma solução breve.

Os princípios maquiavélicos teriam aconselhado uma rápida solução do caso, tendo em conta a insignificância do acusado frente à importância dos acusadores, bem como da sua solução depender uma convivência pacífica entre romanos e judeus.

Festo tem a coragem — mesmo a custo de uma pacífica convivência com os Judeus de Jerusalém — de afirmar que "não era costume dos romanos conceder a entrega de qualquer homem, antes de o réu ter na sua frente os acusadores e poder defender-se da acusação" (Act 25,16).

Em segundo lugar, ao permitir a defesa de Paulo — recordemos que no Direito romano não entra qualquer princípio de origem religiosa — ao permitir a defesa de Paulo, mesmo sem compreender seja o motivo da discussão, seja o porquê do apelo que o Apóstolo faz ao Imperador — o governador Festo está, efectivamente, a colaborar na realização do plano divino.

Se Festo tivesse decidido pela não aplicação do Direito, Paulo não teria ido a Roma; teria perecido dias depois, fruto da conspiração judaica. Nunca teria redigido a sua Carta de apresentação aos Romanos. Não seria um dos fundamentos da Igreja em Roma. Não seria martirizado na capital do Império… o Evangelho salvador de Deus, tal como o apresenta a obra de S. Lucas, não teria encontrado a sua realização na capital do Império. A história universal seria completamente diferente.

Mesmo não tendo referências religiosas, nem por isso o Direito deixa de ser um meio, através do qual se actua o plano divino de salvação. E como o Direito, tantas outras realidades humanas — todas as realidades verdadeiramente humanas. Por meio delas, quaisquer que elas sejam, Deus actua e conduz a história, converte e toca os corações.

Já por constituir uma realidade importante na defesa e reconhecimento da dignidade humana, o Direito seria importante para Deus. Mas é a própria salvação que, misteriosamente, passa também por ele. Passa pelos muitos "Festos" que existem — e que, mesmo não tendo qualquer referência directa a Deus, na sua verticalidade e defesa do Direito não deixam de ser essenciais também para a realização do plano salvador de Deus.

Peçamos ao Senhor para quantos exercem e lutam pelo Direito, a capacidade e a coragem de o defender e exercer livremente. E a todos nós que percebemos e nos maravilhamos como Deus se mistura e tira partido das realidades humanas, a graça de dar testemunho da fé com a nossa vida, deixando que Deus nos tome como seus instrumentos para realizar o plano de salvação de toda a humanidade.

+ Nuno, Bispo do Funchal