Homilia na Festa do Senhor dos Milagres

08-10-2020

FESTA DO SENHOR DOS MILAGRES (Machico)

8 de outubro de 2020


"Para que o mundo seja salvo por Ele" (Jo 3,17)

Deus tudo faz para que o mundo seja salvo. O seu objectivo, o seu desígnio, o seu plano é a salvação de todos e cada um. O seu objectivo nunca foi condenar, levar à perdição, à morte. Ele quer, desde sempre, salvar o mundo.

O que é este "mundo" que Deus quer salvar? Sabemos que, no evangelho de S. João, a palavra "mundo" nos aparece com dois sentidos.

No primeiro deles, "mundo" é a realidade que escolhe viver afastada de Deus - tão afastada que, não raras vezes, se opõe a Deus, luta contra Ele e procura afastar de Deus. "Mundo", neste sentido, são todos os seres humanos que escolhem viver de costas voltadas para Deus. É uma escolha da liberdade humana, uma criação de cada um de nós, sempre que julgamos poder viver sem Deus, governar a nossa vida sem Ele, bastando-nos apenas com os nossos critérios, com aquilo que cada um pensa e quer. "Mundo" somos nós quando procuramos impor a nossa vontade aos outros e ao próprio Deus, pensando que, desse modo, seremos mais livres ou, simplesmente, julgando que, assim, tudo irá correr ao nosso gosto.

É este mundo sem Deus que a Iª Leitura nos mostrava como vida condenada à morte - vida que se condena a si mesma à morte, à destruição, porque se afasta da fonte da vida que é Deus.

Mas, sem Deus, o que nos resta? Resta-nos uma vida para a morte. Ainda que seja uma vida recheada de pequenos momentos de prazer, de luxo, de sensação de poder e até mesmo de sensação de liberdade. Será tudo passageiro, pequeno, sem futuro. Quando esquecemos Deus, condenamo-nos a nós próprios àquilo que somos capazes de construir: ao que é humano, limitado, passageiro. Condenamo-nos à morte.

Só Deus é a vida eterna. O mesmo é dizer: a vida feliz para sempre. E apenas Ele nos pode oferecer a vida eterna. Mais ninguém, nenhum super-homem, nenhuma poção mágica, nenhum passo de ilusão nos pode garantir a vida feliz para sempre. Apenas Deus nos pode garantir que, vivendo ao seu lado, viveremos na eternidade. Apenas Deus o pode prometer e cumprir!

É por isso que Deus ama o mundo (e este é o segundo sentido da palavra "mundo" que nos aparece no evangelho de S. João). Deus ama o mundo não por causa do seu pecado, do seu orgulho, da sua auto-suficiência: Deus ama o mundo porque ele se pode converter, porque ele se pode transformar em proclamação do amor e da vida.

Quando dizemos que "Deus ama o mundo"; quando dizemos que Deus ama mesmo aqueles que se afastaram dele e que, não raras vezes, lutam contra Ele, estamos a dizer que Deus não desiste de ninguém, mesmo do pior assassino. Estamos a dizer que Deus consegue sempre descobrir uma possibilidade, encontrar um caminho, oferecer uma oportunidade de salvação, de vida.

Quando nos referimos ao "mundo que Deus ama" estamos, uma vez mais, a falar de nós, de cada um de nós e de todos, que nos afastamos de Deus não poucas vezes. Que não raras vezes O ignoramos nas escolhas que fazemos em cada dia; que não raras vezes nos procuramos construir sem Ele. É a nós que Ele ama; é a nós, a cada um de nós que Ele procura salvar desta vida que levamos, tantas vezes sem sentido - vida que, tantas vezes, transformamos num inferno que apenas conduz à morte.

Como é possível salvar-nos? Melhor: como é possível deixar que Deus nos salve? A possibilidade de salvação encontrou-a o próprio Deus, de um modo que a nós apenas nos pode maravilhar: para nos salvar, Ele próprio se faz homem em Jesus de Nazaré, vive a nossa vida, experimenta na cruz a nossa morte. E, assim, julgando a morte que tinha derrotado a Deus, foi ela própria derrotada, no seu terreno. Porque este Jesus que vemos morto e crucificado, ressuscitou e vive para sempre, e nos oferece a nós a sua vida - que é vida eterna!

É por isso que nós, cristãos, olhamos constantemente para a cruz e a tomamos como glória, trazendo-a ao peito, colocando-a em nossas casas, erguendo-a no cimo das igrejas e dos montes para todos a possam olhar.

E é também por isso que, olhando para a cruz de Jesus Cristo, vemos resplandecer nela o amor que Deus tem por cada um e por todos. Olhando para a cruz de Jesus Cristo percebemos o quanto valemos para Deus. Olhando para a cruz de Jesus Cristo percebemos o quanto o nosso semelhante vale para Deus! A cruz de Jesus está, por isso, bem longe de ser sinal de derrota ou de morte. Pelo contrário: é sinal de amor e de vida - de vida eterna! Mesmo quando é colocada nos cemitérios, no lugar onde jaz o corpo de um cristão, isso significa que ali se encontra o corpo de alguém que recebeu no baptismo as sementes da vida eterna e que acredita na vida que Cristo nos ganhou para sempre!

2. Faz, por isso, todo o sentido, que hoje, aqui, nos reunamos uma vez mais, para recordar aquela noite de 8 para 9 de outubro de 1803, quando uma aluvião semeou a morte e a destruição em Machico e um pouco por toda a Ilha, levando atrás das suas águas tudo quanto encontrava. A própria capela (tudo indica a primeira construída na Madeira), as suas paredes e o que ela continha e guardava, a cruz que assinalava a vida cristã madeirense desde o primeiro dia em que esta Ilha foi povoada - praticamente tudo foi arrastado pelas águas, com uma inusitada força de destruição.

Recordamos hoje aquele dia fatídico de 1803, de grande sofrimento e aflição. Mas recordamos também todos os outros momentos de aflição que, individualmente ou como comunidade, cada madeirense viveu ou vive, desde o início até aos nossos dias.

E recordamos também - sobretudo! -, com o coração cheio de gratidão, a insistência com que o Senhor dos Milagres quis ficar connosco: do barco americano que o recolheu dias após a aluvião, à entrega do crucifixo pelo capitão do barco na Sé do Funchal, e o seu regresso, 10 anos depois, à cidade de Machico e à sua capela já reconstruída.

A história deste crucifixo mostra-nos como Jesus Cristo não abandona este seu povo. Como Ele quer partilhar o nosso quotidiano, marcado tantas vezes pelo sofrimento. Jesus diz-nos, desse modo, que a nossa aflição estará sempre presente na sua cruz. E que, na sua cruz, Ele continua a colocar a nossa vida, com as suas alegrias e conquistas, mas também a nossa morte, o nosso pecado, para nos oferecer em troca a sua vida gloriosa e eterna.

Como o povo de Israel no deserto olhava para o madeiro onde se encontrava a serpente da vida - como que transformando a serpente do primeiro pecado em fonte de vida e de esperança - queremos, também nós, olhar hoje com fé para o madeiro da cruz, onde o Senhor Jesus Cristo se encontra crucificado. Olhamos para Ele e confiamos-lhe as nossas aflições, a nossa vida, os nossos dias.

Ao mesmo tempo, deixamo-nos olhar por Ele, o Homem da vida nova, porque o seu olhar nos transforma, nos converte, nos dá esperança, nos oferece, a nós como aos nossos antepassados, a certeza da vida eterna que Ele promete a quantos nele confiam.

+ Nuno, Bispo do Funchal