Homilia na Missa pelos Cónegos falecidos
Missa pelos Cónegos da Sé falecidos e por todos os colaboradores da Sé também falecidos
Homilia do Cónego Vítor dos Reis Franco Gomes, Deão do Cabido da Sé
Ao cabido da Sé, criado em 1514 pela bula da constituição da Diocese, foi dada a responsabilidade de cuidar do culto celebrado na Catedral e do património que a constitui, o que cada geração procurou fazer dentro das possibilidades e dos limites que lhe eram dados, dos meios materiais de que dispunham para fazer frente à renovação e manutenção necessárias em cada época. Ao longo dos tempos, criaram-se na Sé diversas confrarias que desenvolviam a piedade dos cristãos e contribuíam para manter viva a dedicação à Igreja Catedral e em geral o amor à Igreja. O passado nunca é um depósito morto mas uma fonte de inspiração, ao modo da atitude do escriba do Evangelho que sabe tirar do seu tesouro coisas velhas e coisas novas. O Cabido foi, ao longo dos séculos, uma instituição que permitiu a continuidade da transmissão da fé e ajudou a gerir o ordenamento pastoral da própria diocese. Aqueles que nos precederam e todos os que, duma forma ou doutra, se dedicaram à Sé, merecem a nossa gratidão. Ao rezarmos pelos cónegos falecidos e demais colaboradores desta Sé temos consciência de fazer parte da mesma comunhão de fé e de ser membros da Igreja de Cristo que atravessa os séculos da história e, pela ação do Espírito Santo, se mantém fiel à fé recebida dos Apóstolos, apesar de todas as infidelidades e fraquezas humanas. O nosso dever de gratidão diante da obra de Cristo em nós, alarga-se portanto a todos aqueles que, ao serviço desta Sé, procuraram ser, como pastores do povo de Deus, testemunhas de Cristo pastor do seu rebanho. Vale a pena lembrar que eles são sempre membros desta Igreja pois não só rezamos por eles mas sabemos que eles também intercedem por nós. Mais do que nós, eles são capazes de perceber, e até de inspirar com a sua oração, os caminhos que a Igreja há de percorrer no presente para ser fiel ao Evangelho. O mistério da Páscoa sempre fez parte da vida dos cristãos, o que levava S. Agostinho a dizer que a Igreja não só afronta os combates do exterior mas também no seu interior. A meta é sempre Jesus Cristo de que a Igreja há de ser o rosto concreto no nosso tempo. A fidelidade ao Evangelho nunca está adquirida de uma vez por todas porque ela requer sempre o trabalho da nossa conversão. Esta é a condição do anúncio do Evangelho que não passa apenas pela palavra, mas pela unidade entre a Palavra e a vida. S. Agostinho diz ainda num sermão conhecido sobre o profeta Ezequiel que quando os pastores apascentam é Cristo que apascenta e supõe que os próprios pastores se deixem apascentar pelo único pastor que é Palavra e vida.
Jesus Cristo, diziam os primeiros cristãos, é o médico divino. Sobre as feridas que causam os males humanos e naturais ele vem colocar, como bom samaritano, «o óleo da consolação e o vinho da esperança». Na difícil situação de pandemia em que vivemos e que no fundo se vai repetindo de século em século, não podemos deixar de fazer memória de todas as iniciativas tomadas pelo clero e pelos fiéis no que toca a acção caritativa, os votos feitos aos santos, em especial S. Tiago e Nossa Senhora, periodicamente, para acompanhar, proteger, orientar e fortalecer o povo de Deus.
«Celebremos os louvores dos homens ilustres, dos nossos antepassados através das gerações». Estas palavras de Ben Sirá que hoje se aplicam tão bem à memória de S. Nuno de Santa Maria que celebramos dizem-nos que a gratidão por todos os que nos precederam é uma força para o presente. Dos melhores de entre eles, como é o caso de S. Nuno, recebemos um testemunho de vida cristã que nos instrui e nos convida a prosseguir com o nosso testemunho. A sua humildade e caridade para ir ao encontro dos pobres nasce e alimenta-se do Evangelho. Ele compreendeu que a verdadeira fama, a autêntica ilustração não vem dos feitos gloriosos das armas, nem da notoriedade do nascimento mas da graça de Deus, da sua glória que se revela nos gestos de todos os dias, gestos de dom, de encontro, de proximidade, de hospitalidade. «O Senhor realizou neles a sua glória, a sua grandeza desde os tempos mais antigos», diz Ben Sirá. Deus não falta portanto com estes exemplos de vida autenticamente evangélica que são expressão da sua glória, isto é, do seu amor manifestado em Jesus. Este é um dos sinais permanentes de que ele conduz a história e faz brilhar a sua luz através daqueles que chama a serem luz do mundo e sal da terra. Numerosas testemunhas credíveis do Evangelho, homens e mulheres empenhados em viver a fé que receberam no batismo, certamente abundaram nestes cinco séculos de vida da Catedral, tanto clérigos como leigos. Com eles, damos graças a Deus e intercedemos uns pelos outros porque a santidade é sempre um dom.
Ela resulta também duma escolha, ou se quisermos duma preferência, a preferência dada a Jesus, como ouvimos no Evangelho. S. Nuno de Santa Maria aponta-nos o caminho com a sua fé e caridade. A escolha de Jesus implica renúncia, aceitação da cruz mas isso é a consequência da determinação em dar a vida como Ele e com Ele. É preciso vencer a idolatria que renasce sempre dos apegos a si mesmo, às coisas, às pessoas. Esta é a condição para ser livre, como é dito noutra passagem: «Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres». A meta é ser seu discípulo e, a partir deste centro, ver transformados todos os outros relacionamentos. O dom da vida de Jesus é fonte de liberdade, sinal duma humanidade verdadeira que somos chamados a viver em Igreja. Que S. Nuno e todos os que nos precederam ao serviço desta Catedral e por quem rezamos hoje, partilhem connosco, uma vez mais, a alegria desta escolha do Evangelho.