Homilia no Dia da Região - 2019

01-07-2019

HOMILIA NO DIA DA REGIÃO

1 de Julho de 2019

Igreja Matriz de Machico

Leituras (Visitação de Nossa Senhora):

Rom 12,9-16b;

Sal 102 (103), 1-2. 3-4. 8-9. 10-11;

Lc 1,39-56

"Conhecendo eles que era terra, houveram todos muito prazer e deram, uns aos outros, grandes gritos, com alegria, zombando do medo passado e do espanto que tinham, sendo aquilo ilha e terra tão formosa [...]. E, por já ser noite, não sairam naquele dia em terra, passando a noite com muito contentamento [...]. Sabido isto pelo capitão, determinou sair em terra, o que logo fez acompanhado da gente principal dos navios, e levou consigo dois padres, que foram com ele. [...] E pelos padres mandou benzer água, que andaram espargindo pelo ar e pela terra, como quem desfazia encantamento, ou tomava posse, em nome de Deus, daquela terra brava e nova, nunca lavrada nem conhecida desde o princípio do mundo até aquela hora, e, feito isto, mandou dentro, na árvore e casa que do tronco está feita, armar um altar. [...] E foi esta a primeira missa que se disse nesta ilha e lugar, donde se, depois, fundou a igreja de Cristo e foi dita esta primeira missa, no dia da visitação de Santa Isabel, 2 de Julho do dito ano de 1419".

Assim descreve Jerónimo Dias Leite, na sua obra Descobrimento da ilha da Madeira, o achamento da nossa Ilha, passam hoje precisamente 600 anos. Por isso mesmo, os textos usados na presente celebração foram retirados da Festa da Visitação de Nossa Senhora - a mesma festa que os padres que acompanhavam Zarco celebraram naquele primeiro dia.

Não desconhecemos as polémicas da investigação histórica acerca desta data que agora celebramos. Mas hoje não é o momento de entrar nessas discussões. É antes ocasião de recordar o modo como os navegadores portugueses tomaram posse destas novas paragens: com a água do batismo, foram tomando posse em nome de Deus "daquela terra brava e nova, nunca lavrada nem conhecida desde o princípio do mundo até aquela hora".

A tomada de posse da Ilha por parte de João Gonçalves Zarco, em nome d'El-rei de Portugal, coincidiu com a aspersão da mesma "em nome de Deus" e com a consecutiva celebração da Eucaristia, por parte dos dois padres que viajavam com o Capitão. A Madeira foi descoberta cristã. Achada no seu início como lugar "donde se, depois, fundou a Igreja de Cristo". A Ilha era "formosa", a terra "fresca e viçosa", mas necessitava de habitantes cujo modo de viver expressasse e desse sentido a toda a beleza da criação.

Não é também agora o momento de contar - ou, sequer, de resumir! -, ainda que com poucas palavras, a história da fé nestes 600 anos que medeiam entre aquele longínquo 2 de Julho de 1419 e este nosso dia. Sabemos que ela começou a ser escrita nesse primeiro instante, e que foi história de tenacidade e sofrimento (que a vida cristã sempre traz consigo), mas que foi igualmente história de festa, alegria, celebração (não menos características do cristianismo).

Seja suficiente, por agora, darmo-nos conta de alguns dos frutos daquela benção e daquela Eucaristia celebradas pelos padres que acompanhavam Zarco, e da vida daqueles que, posteriormente habitaram a Ilha, e que ainda hoje são manifestos a qualquer olhar, mesmo ao mais desprevenido: os templos que foram sendo construídos por toda a Madeira, pequenos e grandes (da ermida de Santa Catarina à Catedral ou à nossa contemporânea igreja de Santa Cecília), e que, na sua diversidade, assinalam a vivida riqueza da mesma e única fé; e, sobretudo, a própria fé - aquela fé tornada vida quotidiana, nas famílias, nas comunidades, no trabalho, manifesta nas inúmeras procissões que todas as semanas povoam a nossa Ilha, ou na imensamente maior e mais presente acção da caridade, escondida a maioria das vezes das páginas dos jornais, mas essencial para aquele que a acolhe e para aquele que a pratica.

2. Não podemos, contudo, ficar satisfeitos com esta realidade que, bem longe de constituir uma simples pertença nominal (ao contrário do que muitos querem fazer querer), não é, no entanto, isenta de possibilidades de aperfeiçoamento.

Aliás, a leitura da Carta aos Romanos (Rom 12,9-16b) colocava diante de todos nós aquele novo modo de viver característico dos cristãos, propondo-se-nos quase como um exame de consciência: como resposta ao amor gratuito e salvador de Deus, o Apóstolo apresentava aos cristãos a vida concreta da caridade, o mesmo é dizer, o amor de Deus acolhido, transformador e sempre actuante nos corações.

S. Paulo começava por apontar o modo como os cristãos se hão-de relacionar entre si: o amor fraterno, a estima recíproca, a procura constante do bem do irmão, o serviço do Senhor. E acrescentava ainda: alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes na oração.

Logo depois, o Apóstolo elencava as atitudes que hão-de marcar a relação dos cristãos com os demais habitantes da cidade: a bênção para todos, especialmente para os perseguidores; a partilha dos sentimentos de alegria ou de tristeza dos demais; a procura da harmonia, da vida pacífica; a procura do que é humilde, sem aspirar às grandezas segundo o mundo.

Por um lado, não podemos deixar de reconhecer como muitas das nossas comunidades vão vivendo esta vida nova: como o amor fraterno e o serviço do Senhor são uma realidade; e não podemos deixar de reconhecer, igualmente, o contributo essencial dos cristãos na vida da cidade: a vida social, económica e política da Madeira foi e é em grande parte protagonizada pelos cristãos.

Mas, por outro lado, não podemos deixar também de reconhecer os muitos pecados, as muitas falhas e fracassos que marcaram estes 600 anos, seja por parte dos cristãos tomados individualmente, seja por parte da comunidade cristã no seu todo. Por eles, não podemos deixar de, diante de Deus e dos homens, pedir perdão. E não podemos deixar de reconhecer como estamos ainda distantes de realizar em plenitude o programa de vida que o Apóstolo Paulo traçava para as nossas diferentes comunidades e para nós próprios!

Por isso, se a presença cristã ao longo destes 600 anos de descoberta da Madeira foi - é - inegavelmente benéfica (recordemos apenas o contributo das ordens religiosas na educação e na saúde); se não podemos deixar de reconhecer que os traços fisionómicos dos madeirenses e da Madeira são em grande parte os de Jesus Cristo, tal não nos autoriza a cruzar os braços e a olhar simplesmente para o passado, congratulando-nos com o que foi realizado, vivido, testemunhado - do mesmo modo que o pecado e as incapacidades do tempo passado não nos autorizam a mergulhar numa qualquer atitude de frustração ou depressão que nos paralise o viver.

Necessitamos de olhar para o futuro. E este futuro só será verdadeiramente digno do passado que vivemos se continuarem a existir comunidades cristãs que o sejam de verdade - o mesmo é dizer, que vivam cada vez mais e melhor o amor fraterno e o serviço do Senhor, e que dêem testemunho desta vida nova no seio de toda a nossa comunidade humana: que sejam uma fonte de bênção; que façam seus, cada vez mais, as alegrias e os sofrimentos de todos; que contribuam para uma vida harmónica e pacífica.

3. Olhando para aquilo que Deus tinha realizado nela - e, por isso, reconhecendo e cantando as maravilhas de Deus quando actua na história dos homens - a Virgem Maria mostrava-nos as características dessa intervenção, todas elas dominadas pela realidade da misericórdia, quer dizer, do amor constante e fiel de Deus para com o seu povo: os soberbos (aqueles que pensam ser auto-suficientes) são dispersos; os poderosos (aqueles que crêem tudo poder e a todos dominar) são derrubados, enquanto os humildes são exaltados; os famintos são cheios de bens enquanto os ricos são despedidos de mãos vazias.

No fundo, Nossa Senhora dava-nos, também ela, o desenho do que acontecerá perfeitamente no Céu, junto de Deus, mas que constitui como que a maquete da sociedade que nos é já hoje proposto construir: uma sociedade onde todos necessitam de todos, e onde a ninguém é recusado o mínimo indispensável para uma vida digna e humana.

A história destes 600 anos é a história de um povo cristão que desde o primeiro momento lutou por, acolhendo o amor e a vida de Deus no seu quotidiano, humanizar e divinizar não apenas as terras como as próprias relações humanas.

Hoje, fazemos memória agradecida do trabalho e da vida deste povo ao longo de todos estes séculos, enquanto procuramos tornar-nos capazes de corresponder à sua história.

Mas agradecemos sobretudo a Deus, que sempre nos acompanhou. E louvamo-Lo porque a sua misericórdia se manifestou tão concretamente, de geração em geração, sobre aqueles que O temem, aqui na vida da nossa Ilha. É esta misericórdia que nos ajuda a olhar o futuro com a mesma confiança e entusiasmo daqueles que aqui semearam a fé nos primeiros dias e anos. É ela que nos dá a certeza de uma Madeira sempre mais de Deus e, por isso, mais dos homens, mais dos madeirenses e de quantos nos procuram, turistas ou migrantes.

No dia 1 de Julho de 1419, os companheiros de Zarco "deram, uns aos outros, grandes gritos, com alegria, zombando do medo passado e do espanto que tinham, sendo aquilo ilha e terra tão formosa". A Ilha e a terra, que continuam formosas, sugerem-nos hoje não menor alegria. E a Eucaristia daquele 2 de Julho é a mesma que agora celebramos, porque único é o sacrifício de Jesus na cruz.

Entre estas duas celebrações, e unida a elas e às tantas outras que, quotidianamente, foram dando uma particular qualidade à vida dos madeirenses, está a riqueza e a grandeza da vida de um povo que, vivida em união com Cristo, nos urge hoje a esperança de continuarmos a construir uma sociedade digna da "Ilha e terra tão formosa", mas, sobretudo, digna do ser humano, digna de Deus.

+ Nuno, Bispo do Funchal