Homilia Quarta Feira de Cinzas 2024
QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Catedral, 14 de fevereiro de 2024
"Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes" (Joel 2,13)
1. "Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes". Este convite do Profeta Joel que acabámos de escutar, não pode deixar de ser uma interpelação para todos — tanto mais que ele é, mesmo que por outras palavras, retomado no evangelho pelo próprio Jesus.
Para o povo de Israel, rasgar as vestes era um sinal de luto, de angústia, de arrependimento. Os pais faziam-no pela morte de um filho: Jacob rasgou as suas vestes quando recebeu a notícia do desaparecimento de José (Gen 37,34); e David rasgou-as ao receber a notícia do assassinato de seus filhos (2Sam 13,31).
Mas, para Israel, rasgar as vestes era, também, um modo de confessar a culpa diante de Deus, e de pedir perdão: quando o exército de Israel fugiu da batalha, tornando impossível a entrada na Terra Prometida, Josué rasgou as vestes, prostrou-se por terra e cobriu a cabeça com cinza, pedindo ao Senhor que perdoasse o pecado do povo (Jos 7,6); e o mesmo sucedeu quando a Arca da Aliança caiu nas mãos dos filisteus (1Sam 4,12).
Rasgar as vestes, expor a nudez do corpo, expressa a pobreza total daquele que, por causa do sucedido, ficou indefeso, sem razão de viver — seja pela morte de alguém querido, seja por causa do seu pecado ou do pecado de todo o seu povo. Mas, diante de Deus, rasgar as vestes expressa, igualmente, a insensatez do pecado e a disponibilidade para acolher a palavra definitiva do Senhor.
Com frequência, o gesto de rasgar as vestes era também acompanhado pelo revestir-se de saco e por colocar cinza sobre a cabeça: diante de Deus, o pecador reconhece que nada vale senão cinza. Assim fizeram os habitantes de Nínive, em sinal de penitência, depois que Jonas os advertiu do pecado: "Os homens de Nínive acreditaram em Deus, proclamaram um jejum e vestiram-se de saco, do maior ao mais pequeno" (Jon 3,5).
2. Contudo, o Profeta Joel diz: "Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes". Rasgar as vestes era já um sinal visível de conversão, de arrependimento, de penitência; mas era ainda algo que poderia dizer apenas respeito ao exterior do crente.
Quando o profeta convida a rasgar o coração, convida a ir mais além e mais profundamente: porque o coração é, para a tradição bíblica, o lugar da vida, do sentimento, das escolhas, da relação com Deus. É, por excelência, o lugar do mistério da pessoa humana, o lugar do seu segredo mais íntimo e mais profundo. Recordemos a afirmação do Profeta Jeremias: "O coração é o que há de mais astucioso e incompreensível; quem pode entendê-lo? Posso Eu, o Senhor, que penetro os corações e aprofundo os sentimentos de todos" (Jer 17,9).
Rasgar o coração significa, portanto, abrir diante de Deus a nossa realidade mais íntima; expô-la à Sua luz e ao seu juízo; deixar que Ele converta o nosso modo de pensar, de ser, de viver — que o faça não apenas no que somos exteriormente, naquilo que aparece e é conhecido por todos ou a alguns, naquilo que diz respeito à nossa vida social, mas que modifique igualmente aquelas realidades que constituem o núcleo mais sagrado e íntimo de cada um — a fonte daquilo que, de verdade, nos move e que inspira as nossas escolhas, que anima a nossa vida.
A isso também nos convidava Jesus no evangelho: "Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa" (Mt 6,3-4).
Todos nós necessitamos, verdadeiramente, de conversão. Cada um e todos. Necessitamos de conversão pessoal e de conversão comunitária, nós que vivemos num mundo que é tão ao contrário do que nos propõe o Evangelho! Nós, que vivemos num mundo em que o importante é ser louvado pelos demais, é aparecermos publicamente! Nós, que vivemos num mundo que facilmente elogia aquele que rasga as suas vestes, mas onde quem ousa expor o seu coração à luz divina é ridicularizado e perseguido!
3. É verdade que a nossa civilização ocidental encontra grande parte das suas raizes na fé cristã, nas suas propostas de vida, nos seus valores e atitudes (e até nos seus ritmos temporais). Mas, sejamos honestos, este nosso mundo está tão longe de Jesus!
Este nosso mundo valoriza o "eu", o subjectivo; o cristianismo valoriza o outro, a caridade. Neste nosso mundo somos convidados a desconfiar de tudo e de todos; o cristianismo tem na sua raiz a fé. Este nosso mundo vive para o presente; o cristianismo vive para a eternidade. Este nosso mundo exalta o poder; o cristianismo enaltece o serviço. Este nosso mundo procura a riqueza material; o cristianismo apresenta como caminho o pobre que é Jesus. Este nosso mundo coloca o homem no centro de tudo; o cristianismo coloca Deus no centro da nossa vida. Este nosso mundo celebra os heróis, aqueles que são recordados pelas obras que conseguiram realizar; o cristianismo olha para os santos, aqueles em quem Deus mostrou e tornou real o seu amor para com todos.
Está perdido este nosso mundo? Claramente corrompido? Definitivamente condenado? Até nisso o cristianismo é diferente, porque Jesus nos garante que o amor de Deus oferece sempre uma nova oportunidade, não ao pecado mas ao pecador. Sim, como afirma o Papa Francisco na sua mensagem, esta Quaresma mostra como "Deus não Se cansou de nós".
Por isso o Santo Padre convida-nos: "Acolhamos a Quaresma como o tempo forte em que a sua Palavra nos é novamente dirigida: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa da servidão» (Ex 20, 2). É tempo de conversão, tempo de liberdade. […] Ao contrário do Faraó, Deus não quer súbditos, mas filhos. O deserto é o espaço onde a nossa liberdade pode amadurecer numa decisão pessoal de não voltar a cair na escravidão. Na Quaresma, encontramos novos critérios de juízo e uma comunidade com a qual avançar por um caminho nunca percorrido".
Hoje, não iremos rasgar as nossas vestes. Mas vamos impor-nos as cinzas, como expressão da atitude interior de quem grita, uma vez mais, ao Senhor: "'Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo e não entregueis a vossa herança а ignomínia e ao escárnio das nações", na certeza de que, uma vez mais, Ele se irá encher de zelo e ter compaixão deste seu povo que somos nós.
+ Nuno, Bispo do Funchal