Homilia Te Deum
Solenidade da Sagrada Família - Te Deum
1. "O Senhor te abençoe e te guarde; Ele faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te seja favorável; o Senhor volte para ti a sua face e te conceda a paz".
Estas palavras do Livro dos Números, que foram assumidas como as típicas palavras de bênção, também pelos cristãos, convidam-nos a tomarmos consciência de que somos abençoados — sentimo-nos abençoados — por Deus!
Por entre todas as dificuldades; por entre todos os sofrimentos (nossos e daqueles que estão à nossa volta, ou que foram confiados à nossa responsabilidade e que não podemos deixar de fazer nossos) — por entre todos os sofrimentos, sentimo-nos abençoados.
Muitos foram os dons que recebemos de Deus. E muitas foram, também, as vezes que os desperdiçámos: seja porque lhes fizemos "ouvidos de mercador"; seja porque, no nosso orgulho, pensámos que deveria ser de outro modo e não como Deus quer; seja porque, simplesmente, fomos incapazes de viver esses dons por completo.
O final de um ano (esse ciclo de tempo que vai marcando a nossa existência como pessoas e como comunidade) é sempre momento para agradecer a Deus as bênçãos que dele recebemos e, ao mesmo tempo, para nos dispormos a acolher e a viver o ano que vai começar — essa oportunidade que Deus nos oferece para O conhecermos melhor e O louvarmos, crescendo em humanidade e fé, como pessoas e como comunidade.
Não vivemos no melhor dos mundos. Mesmo nesta Ilha a que muitos chamam paradisíaca. Mesmo quando estudos mais ou menos científicos colocam o Funchal no topo das melhores cidades europeias para constituir família, considerando as oportunidades de Educação, de Saúde e Segurança, e o Modo de Viver (Estudo Preply, Outubro 2023): sabemos bem o quanto nos falta ainda caminhar para que todos possam desfrutar de efectivas oportunidades para desenvolver todo o seu potencial, aqueles dons que Deus sempre concede a cada ser humano para que os coloque ao serviço de todos.
Não vivemos no melhor dos mundos, mas sentimo-nos abençoados, sobretudo quando tomamos consciência das dificuldades que tantos outros povos vivem no seu quotidiano — basta pensar nos povos da Ucrânia e da Terra Santa, envolvidos numa espiral de destruição e vingança de que não se vislumbra o fim.
2. É para todos claro que, como gosta de sublinhar o Papa Francisco, não vivemos apenas numa época caracterizada por inúmeras e velozes mudanças, mas somos os protagonistas duma mudança de época.
O Império romano, no seio do qual Jesus nasceu, considerava-se a si mesmo o melhor dos mundos: pensava que tinha a melhor organização social; as melhores instituições; que era detentor da melhor organização política e jurídica… o mundo estava em paz. Para além das fronteiras do Império, viviam "os bárbaros", esse emaranhado de tribos que não partilhava os costumes romanos, e que teria como destino inevitável ser integrado no modo de viver dito "civilizado"…
Sabemos como a história se encarregou de desmentir a soberba destes pensamentos. O Império caiu, vítima, sobretudo, da podridão em que vivia e que minava as suas instituições. Implodiu, incapaz de se renovar. Os bárbaros, olhados com desdém pelos romanos, desfizeram as fronteiras, queimaram as cidades, espalharam a destruição. Muitos, ao saber da queda da "Cidade Eterna", pensaram ser o fim dos tempos. Sabemos como Santo Agostinho respondeu a esses medos, mostrando que não era o mundo velho que terminava, mas um mundo novo que nascia.
Esse mundo novo foi construído pela confluência de várias realidades: a civilização romana que os bárbaros logo adoptaram em grande medida; os usos e costumes que os próprios invasores traziam consigo; mas também (e não com menor peso) o modo de vida das comunidades cristãs com que foram confrontados e onde foram acolhidos. É verdade: das cinzas do Império, o cristianismo fez nascer uma nova civilização, ao servir de cimento e de motor, de verdadeira alma do mundo novo que surgiu. Ao contrário do que alguns intelectuais romanos denunciavam escandalizados ("os cristãos passaram para o lado dos bárbaros"), o que sucedeu foi, tão simplesmente, o natural da vida cristã: a fé passava a dizer-se num outro modo de viver, porque o cristianismo é capaz de ser alma de qualquer cultura humana.
Hoje, vivemos um dinamismo muito semelhante. O mundo ocidental tal como o conhecemos (em grande parte fruto também do viver cristão), está a ser posto em causa nos seus valores, na sua ordem, na sua cultura. E está, também ele, a implodir, incapaz de se renovar, retomando, muitas vezes, os tiques do final do Império.
Não somos ainda capazes de determinar as características desse mundo novo que se encontra às nossas portas. Mas basta tomar consciência da chamada "Inteligência artificial", e de como ela se mostra capaz de modificar o nosso modo de viver: não apenas nos torna vizinhos uns dos outros (sem nos tornar irmãos), como encontra soluções que nem sequer conseguiríamos imaginar, mais eficazes e mesmo mais adaptadas ao que vivemos e necessitamos; ou, ainda, como ela relativiza fronteiras, colocando em causa a soberania dos Estados e o direito internacional. E como, ao mesmo tempo, se apresta a condicionar o nosso pensamento, os gostos, os objectivos de cada um e de toda a sociedade.
Mas a grande questão que nos é colocada, não é tanto se essa nova época virá ou não. A grande questão versa antes sobre se seremos ou não capazes de dar alma cristã a esse mundo novo que nos bate à porta. Se as nossas comunidades vivem de tal modo a fé que possam oferecer Jesus Cristo à nova época que desponta, para que os seres humanos possam viver como redimidos, na perspectiva da Vida Eterna — ou se, simplesmente, se limitarão a viver para o aqui e agora, autómatos, sem horizontes de eternidade, que o mesmo é dizer, sem os horizontes de Deus.
3. Encolhendo os ombros, podemos dizer, que nós os madeirenses, somos demasiado pequenos para contarmos, como protagonistas, na construção desse mundo novo. Que apenas saindo da Ilha poderemos fazer a diferença nos diversos campos: na investigação científica e no pensamento, nos mundos da cultura e da arte, da saúde, da economia ou da política.
Como quer que seja, não creio que nos nos possamos limitar a encolher os ombros. Devemos ousar ir mais longe. Porque somos, também nós, parte deste nosso mundo. E, por isso, somos convidados por Deus a ser seus construtores — construtores decididos dum mundo novo. Não podemos deixar que a Ilha nos limite.
Certamente: não queremos construir aqui a ilha que S. Thomas Moore chamou de "Utopia"; nem queremos, simplesmente, dar asas à nossa imaginação, às nossas fantasias e frustrações. Mas devemos sempre ousar construir o mundo que Deus nos propõe e para o qual sempre nos convida. O mundo de que o Verbo feito carne é iniciador e modelo. O mundo que tem a forma de Jesus, e onde todos se percebem irmãos e respeitados na sua dignidade. É possível dar um rosto mais autenticamente cristão à nossa Ilha e ao mundo. Deus confia-nos a todos nós, cristãos, a tarefa de lhe oferecer esse rosto.
E queremos construir este mundo novo aqui, como madeirenses. Com o nosso povo, com a sua identidade, com as suas tradições e com a sua realidade. Mas queremos aceitar o desafio que Deus propõe, a cada um e a todos, de um mundo mais humano, mais pacífico, e mais divino, por entre toda a inovação tecnológica, transformando as vizinhanças em proximidades e em fraternidade — um mundo que, por isso, sempre faz apelo a Deus e ao seu amor paternal. Um mundo em que a natureza possa ser respeitada e moldada nos seus dinamismos, colocando-a ao serviço de todos. Um novo modo de ser humano, mas nunca um mundo menos cristão. Essa é a missão que Deus nos confere a nós, cristãos desta primeira metade do século XXI: oferecer um rosto humano e divino ao mundo que já fervilha por entre este nosso modo de viver, também aqui na Madeira. Ou seja: a missão de ajudar este mundo novo a perceber-se, também ele, abençoado por Deus.
Sé do Funchal, 31 dezembro 2023
+ Nuno, Bispo do Funchal