Te Deum 2022

31-12-2022

TE DEUM FINAL DE ANO

31 dezembro 2022

Sé do Funchal

1. "O Verbo fez-se carne": esta afirmação que acabámos de escutar, retirada do Prólogo do evangelho de S. João, é central para o cristianismo. Ela reconhece em Jesus a presença do Deus único, criador e salvador: "Aquilo que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos, o que as nossas mãos tocaram acerca do Verbo da Vida, [...] o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos" (1Jo 1,1.3a).

Deus mostrou-se na carne concreta e mortal de um homem. Deste modo, o homem singular que foi Jesus de Nazaré tornou-se o critério de todo o humano, o critério da bondade do viver. Com efeito, Ele introduziu na história a realização daquilo que, até esse momento, era apenas um sonho: a união do homem com Deus. E espalhou universalmente essa possibilidade, unindo-se de certa forma a todo o ser humano, como nos recorda o Concílio Vaticano II (GS 22) - quer dizer: oferecendo a todo e qualquer ser humano a possibilidade de viver a vida de Deus; oferecendo as raízes efectivas de uma salvação universal: não nos basta ter um Pai comum; temos igualmente um Salvador comum!

Foi este dizer-se de Deus em carne humana que, ao longo dos séculos, de formas diferentes, consoante as diversas culturas, implicou os cristãos, seja na edificação da sua vida pessoal (interior, espiritual, ou de interação com os outros), seja na construção de sociedades que se pudessem tornar em ambiente propício para a expressão e crescimento da excelência do humano.

Essas construções sociais, esses diversos modos de viver (que se tornaram civilizações), jamais se hão-de tomar como a realização do céu na terra. Serão sempre construções humanas, aproximações, marcadas pelo pecado dos seus membros, imperfeitas, incapazes de realizar plenamente o projecto divino que Jesus Cristo coloca diante dos nossos olhos, e que apenas será definitivo e pleno no Reino perfeito de Deus.

Mas foi a partir destas raízes (assumindo também o contributo de outros legados como o pensamento grego, a espiritualidade judaica ou o ordenamento romano), foi deste modo que surgiu a Europa - aquela de que hoje nos orgulhamos de fazer parte. A Europa como hoje a conhecemos constitui, com efeito, um ponto alto de humanidade, por isso mesmo demandada por tantos migrantes, que nela buscam acolhimento, a possibilidade de, também eles e suas famílias, beneficiarem das oportunidades, segurança, saber e viver oferecidos a todos nesta nossa cultura, mesmo que, nos últimos decénios, pareça querer abandonar as suas raízes.

Foi também a afirmação da encarnação do Verbo que deu e continua a dar forma ao nosso modo madeirense de ser e de viver. Negá-lo seria cegueira. Querer ignorá-lo, construindo de outro modo, seria opção soberba. Aceitá-lo não é apenas questão de bom senso e realismo, mas também escolha livre e feliz de quem gosta de ser e de viver deste modo: na procura da excelência do humano oferecida a todos como possibilidade concreta de realização, desde que Deus assumiu carne humana em Jesus de Nazaré.

2. "O Verbo fez-se carne e habitou entre nós": por isso, nada do que é humano nos pode ficar indiferente. E, também por isso, nos vemos todos no dever e no direito contribuir activamente na construção da realidade que nos cerca e na qual vivemos. Isso significa participar; significar arriscar escolhas e caminhos concretos; e significa, igualmente, denunciar e alertar para eventuais desvios.

Olhando para este ano que hoje termina, podemos encontrar tantos momentos menos bons. Depois de uma pandemia que paralisou o mundo inteiro, o ano de 2022 parecia oferecer um lento recomeço. Eis senão quando se iniciou uma guerra louca, travada nesta nossa Europa, contradizendo as suas raízes, os seus valores, o seu projecto.

A guerra é, de verdade, uma derrota para a humanidade. A guerra é sempre uma derrota do humano: é uma derrota para aqueles que a travam, mas também uma derrota para todos, porque ela contradiz a fraternidade introduzida no seio da história pelo Verbo feito carne que se uniu a todos os seres humanos.

A guerra surge quando a vontade de domínio, a incapacidade de diálogo e a negação da dignidade humana se substituem ao critério último do Deus feito homem. Nós, cristãos, não podemos ficar indiferentes à guerra (qualquer que ela seja) e a todas as suas consequências. Não podemos ficar indiferentes à vidas ceifadas, às casas destruídas, aos sentimentos de vingança que agora nascem mas que irão permanecer por muitos e longos anos, e que hão-de moldar o modo de ser de várias gerações.

Mas mesmo olhando para nós, para a nossa realidade madeirense, podemos também perceber como a nossa sociedade está ainda longe de corresponder ao paraíso natural em que vivemos: tantos salários baixos, insuficientes para o digno sustento de uma família; o elevado custo de vida; a dificuldade de acesso a digno cuidados de saúde por parte de alguns; o excessivo preço da habitação; o consumo difuso de drogas que matam tantos jovens no seu corpo e na sua dignidade, constituem apenas alguns domínios (porventura aqueles mais à vista) em que necessitamos de progredir, apesar de todo o caminho realizado nos últimos decénios.

Mas o novo ano - tempo concreto que se nos apresenta pela frente - constitui uma oportunidade. Uma oportunidade para continuar o trabalho de construção de uma sociedade cada vez mais humana, onde todos possam encontrar um lugar - o lugar digno de alguém que traz consigo a imagem de Deus e a vocação divina.

O próximo ano traz consigo também a abertura de um processo de revisão constitucional. Não podemos nós, cristãos, deixar de elevar a nossa voz em defesa da dignidade da vida humana que a nossa Constituição actualmente consagra ao afirmar no seu artigo 24º que "a vida humana é inviolável", contra todas as tentativas de esbater esse princípio fundamental do nosso viver, de legalizar constitucionalmente o aborto ou a eutanásia e outros atentados contra a vida humana. E, como madeirenses, não podemos igualmente deixar de tomar a sério a oportunidade que esta revisão oferece para aprofundar a autonomia regional que tanto nos tem dado.

Mas outros campos se hão-de, certamente abrir diante de nós. Conduzidos pelo Verbo feito carne, não deixaremos de procurar para cada um, para as nossas famílias e para a nossa comunidade humana, política e crente a concretização cada vez maior do projecto divino para cada um e para todos.Não nos faltará, certamente, a ajuda de Deus. Assim Ele encontre, em cada um e em todos, a disponibilidade para discernir os seus caminhos e colocar o que sabemos e somos ao serviço de todos, principalmente dos mais pobres.