Voto a São Tiago Menor 2023
SOLENIDADE DE SÃO TIAGO MENOR
01 de Maio de 2023
Santa Maria Maior
A fé sem obras é um corpo sem alma
1. Cada pessoa é um mistério, um ser único, um mundo em que não nos é permitido entrar, a não ser que essa mesma pessoa, por palavras ou atitudes, permita que conheçamos e entremos na sua interioridade. No entanto, é também certo que, não raras vezes, quando julgávamos poder confiar em alguém, nos deparamos com a mentira: entre a sua real vida interior e o que mostrava nas suas palavras existia uma distância enorme. Mais difícil é que alguém minta nas atitudes, nas obras que realiza, naquilo que faz…
Quando falamos de fé, referimo-nos, antes de tudo, a uma relação de pessoas. Só de um modo impróprio podemos dizer que acreditamos num carro ou numa ideia, ou até numa doutrina.
Temos fé em alguém quando acreditamos que esse alguém nos comunica o íntimo do seu ser, a verdade daquilo que vive, daquilo que é. Confiamos não apenas nas suas palavras mas nas suas atitudes; podemos até chegar ao ponto de confiar-lhe a nossa vida.
É desse modo que nos relacionamos com Deus. Quando O encontramos, quando nos deparamos com Ele nalgum momento da nossa vida — quando Ele vem ao nosso encontro e nós O percebemos como Deus — então podemos entregar-lhe toda a nossa existência. Ou seja: podemos construir todo o nosso viver sobre esse encontro. Como afirma Jesus num passo do Evangelho (Mt 7,24), essa vida assim construída é como um edifício seguro, assente em rocha firme, construção que jamais irá desabar porque edificada sobre Deus, Ele que é o princípio e o fim de tudo quanto existe.
2. Com efeito, não nos basta interrogar sobre a existência de Deus. O que importa é o lugar que Ele tem na nossa vida concreta, no nosso quotidiano. Assim, não nos basta admirar os milagres que Jesus realizou; ou concordar com os seus ensinamentos de vida; ou saber que viveu e morreu há dois mil anos… Importa, sobretudo, responder concretamente sobre o lugar que lhe oferecemos na nossa vida, o mesmo é dizer: como confiamos nele — como Ele orienta o nosso existir, quanto Ele pesa nas nossas decisões. Isso é a fé cristã: quando alguém entrega toda a sua existência, o sentido do seu viver, as escolhas que realiza nas mãos de Jesus ressuscitado, acolhido como presente no nosso mundo e no nosso viver. É quando Jesus influencia e conduz o nosso viver.
Mas podemos acreditar n'Ele? Será que Ele não nos engana? Podemos confiar-lhe todo o nosso existir? A prova de que o podemos fazer é, precisamente, o facto histórico de Jesus não ter hesitado em sofrer a morte de cruz.
A Jesus não lhe bastou entregar aos discípulos um conjunto de conselhos sábios, para que os transmitissem aos vindouros; nem lhe bastou ter gestos de amor e de cura para com tantos dos seus semelhantes, dando vista aos cegos ou fazendo que os mortos recuperassem a vida… Jesus entregou tudo o que era, a sua vida, ao sofrer a cruz: por amor, entregou-se completamente nas mãos do Pai, de braços abertos para acolher os irmãos. Se Ele assim nos amou, também nós podemos e devemos amá-lo e amar-nos uns aos outros!
Como afirma o Concílio Vaticano II, a fé é o acto através do qual "o homem se entrega total e livremente a Deus" (DV 5). Entrega-Lhe a sua vontade e a sua liberdade; os seus sentimentos e a sua capacidade de pensar e de amar — tudo é vivido e potenciado (potenciado ao infinito!) por essa relação única com Jesus ressuscitado. É, de verdade, um mundo novo que se abre diante de cada ser humano: por meio de Jesus, o próprio Pai nos oferece o que é seu, a participação na intimidade do seu mistério divino! Quando nos afirmamos cristãos, isso significa que em nós, na nossa vida, damos espaço e existência a esta atitude única, a esta entrega confiante e total que Jesus faz de si na cruz e que passa também a ser nossa.
3. Por isso, não basta que alguém pronuncie as palavras da fé. São Tiago Menor — o Apóstolo que, por ser da família de Jesus, mais conviveu com Ele, e a quem, por isso mesmo, poderiam bastar os títulos de sangue para que o seu testemunho fosse acreditado — São Tiago Menor dizia-nos na segunda leitura: "Mostra-me a tua fé sem obras, que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé" (Tg 2,18).
Dizia-o quase como desafio: se fores capaz, "mostra-me a tua fé sem obras"; ao contrário — parecia o Apóstolo dizer — por aquilo que faço, por aquilo que são as minhas atitudes e escolhas, vou mostrar-te a verdade da fé — não apenas da minha fé, mas da fé que me habita, que vive em mim.
É certo que a fé diz respeito à vida interior de uma pessoa; mas, a ser verdadeira, ela não pode deixar de se expressar em atitudes de vida concretas: atitudes de acolhimento e respeito pelo outro; de perdão e de comunhão; de entrega, de dedicação em vista do bem do próximo. E não pode, igualmente, deixar de se expressar em atitudes de construção da cidade, do viver comum, que a todos importa e que a todos ajuda a ser e a caminhar para patamares de vida mais humana.
Por isso, nós cristãos desta cidade do Funchal, que tem como padroeiro S. Tiago Menor, não podemos descansar neste trabalho de homens e de cristãos que procuram aproximar o viver comum de patamares cada vez mais humanos e cristãos. Não se trata, obviamente de favorecer a preguiça e o desmazelo; trata-se, isso sim, de oferecer a todos os instrumentos e as possibilidades necessárias para que possam viver com a dignidade que é requerida por todo e qualquer ser humano.
Não podemos, por isso, descansar quando vemos que hoje, ao nosso lado, e devido a circunstâncias que lhes são completamente alheias, tantos que apesar de trabalharem honestamente, não conseguem ganhar o suficiente para que a sua família viva com dignidade.
E não podemos, sequer, descansar perante aqueles outros que, vítimas porventura de uma adição à droga ou ao álcool, se vêem de tal forma destruídos interiormente que já nem são capazes de um gesto, uma força, uma saudade sequer, para aderir a uma proposta que os ajude a sair do estado miserável em que vivem.
Séculos atrás, o responsável municipal da saúde viu-se incapaz de fazer mais para cuidar da cidade, invadida pela peste. Por isso, entregou a sua vara nas mãos de S. Tiago, pedindo-lhe que fosse ele o defensor do Funchal — um gesto que o executivo municipal vem repetindo em cada ano, neste dia 1 de maio.
Seja este gesto, realizado este ano mais uma vez, o sinal não apenas do empenho do executivo municipal em continuar as suas acções para erradicar as situações de sem-abrigo e de pobreza de que padece a nossa cidade, mas o sinal do empenho de todos nós, funchalenses — empenho concreto, surgido da fé e animado por ela — para fazermos quanto está ao nosso alcance em favor de todos, sobretudo os mais desprotegidos.
Não se trata, como é óbvio, de um gesto para mostrar ostensivamente a fé que nos anima, mas de uma atitude que, animada pela fé, nos conduz a sair do nosso conforto para procurar proporcionar a todos o mínimo de dignidade humana. Nos ajude e inquiete São Tiago Menor a defender desse modo a nossa cidade!
+ Nuno, Bispo do Funchal